terça-feira, 29 de abril de 2008

Humor Negro ou Tragicomédia?

"Mas, ficou com medo quando sentiu o vento e, começando a afundar, gritou: 'Senhor, salva-me'."
(Mateus, XIV, 30)
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"sua alma subiu ao céu, seu corpo desceu ao mar"
Alphonsus de Guimaraens
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Padre Adelir parecia de boa índole, humilde e, principalmente, parecia ter bom humor. Pois há coisas que só o humor redime. Se bem que Aristóteles dizia que a comédia envolve um ridículo, mas sem sentimento de dor ou sofrimento. Já a tragédia deveria ser sempre grave, imaginem se o fim de Romeu e Julieta começasse com um deles tentando pregar uma peça no outro, tipo aquelas brincadeiras que se utilizam de um susto pra fazer uma surpresa? Ou se Brutus quisesse apenas fazer com Júlio César o que João Grilo fez com Chicó no Auto da Compadecida? Ou então imaginem o próprio Padre Adelir, no espaço, olhando pro GPS e lendo: decifra-me, decifra-me... Padre Adelir fez tudo errado, pelo que a mídia mostrou, o destino nem precisou fazer esforço. Quem mandou ser monoteísta? Iemanjá, só de ciúme, levou o moço pra ela.

segunda-feira, 28 de abril de 2008

Fio de navalha

Minha tristeza é uma tristeza de homem, uma tristeza sutil. Minha tristeza é tão estranha que, ao se saber tristeza, torna-se alegre, ou se não isso, minha tristeza é tão esquisita que, ao encontrar outra tristeza tão grande, torna-se alegre, ou por outra, minha tristeza é tão excêntrica que, ao encontrar um admirador, posto que secreto, torna-se, sem saber, alegre. Ou ainda: minha tristeza é tão bizarra que, por sua própria força, tira das vísceras a alegria, como Deus tira mundos do Nada. Esta tristeza não quero, tristeza que, por ser minha, ao deixar de ser tristeza leva um pedaço de mim, deixando apenas o vazio da alegria. Esta tristeza sutil que, por ser de homem, é tão frágil. Eu quero a tristeza que ninguém tira de mim: eu quero a tristeza dos cães.

sexta-feira, 18 de abril de 2008

Três histórias

Na hora de acertar as contas:
- Mas isso não basta?
- Não paga nem metade.
- Puta, e agora? Toma, pega esse óculos: é mormaii.
- Mormaii? Estou vendo. Faz o seguinte: arranca os olhos e deixa em cima da mesa.

corta.

Na fila do caixa do restaurante, o casal de namorados:
- Estou com um sentimento ruim - diz ela.
- Quê? Pressentimento?
- Não, sentimento ruim.
- Ah...
Silêncio.
Ela quebra:
- Estou sem assunto.
- Sem assunto? - ele estranha - Eu também.
Abraçam-se, ele a beija na testa, estende o cartão:
- No débito, por favor.

corta.

Manhã cedo, lendo o jornal, o marido rasga um pedaço do caderno de cultura e anota: aniquilar o eu. Prende com ímã na geladeira, a esposa encontra. De noite, o marido abre a porta cabisbaixo, a mulher lhe estende o papelzinho:
- O que significa isso, Alfredo?

quinta-feira, 17 de abril de 2008

quarta-feira, 16 de abril de 2008

Ateísmo para crianças

"Se o mundo pesa, não vai ser de reza que você vai viver"
Marina Machado, em Grilos, de Roberto e Erasmo.
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Face a impossibilidade de argumentação lógica para questões como ateísmo ou religião, muitas pessoas recorrem ao impreciso terreno da psicologia para justificar questões como essas sem apelar à fé ou ao agnosticismo. Prova disso foi uma aluna minha que, diante da confirmação de meu ateísmo, perguntou-me se havia ocorrido algum trauma em minha vida. Achei a pergunta peculiar e respondi que não, mas não assim tão rápido. Como costumo fazer, respondi primeiro com uma pergunta: se houvesse ocorrido um trauma seria um motivo para eu me tornar ateu? Antes que ela respondesse, arrematei com outra pergunta: se não houvesse ocorrido nenhum trauma, eu deveria permanecer para sempre religioso? Infelizmente o assunto não prosperou, pois ela não percebeu que minha pergunta era um fundamento para a sua e insistiu na mesma pergunta, como se prescindisse de um fundamento, como aqueles alunos que perguntam as horas.
Mas se procuramos as razões psicológicas do ateísmo ou da religião, devemos recorrer antes aos fatores sociais, culturais. Pois é mais pertinente perguntar por que se ensina a religião às crianças do que perguntar como um adulto "aprendeu" a ser ateu. E uma resposta seria, fazendo um retorno torto à psicologia, uma idéia inconsciente de que a primeira coisa que se deva ensinar a alguém que recebeu o dom da vida é uma razão para viver. A isso junta-se a tradição duma espécie de otimismo transcendental em relação à vida, que é transmitida à criança sob a forma de algo invisível e poderoso que atende pelo nome de papai do céu, respondendo-lhe de quebra de onde veio o mundo e para onde foi o vovô.
Se não quisermos identificar este otimismo sobrenatural com a simples ignorância, podemos identificá-lo com um medo (já que a psicologia já está pra lá de vulgarizada), um medo do suicídio, medo este calcado na idéia de que, sem uma razão para viver, desiste-se de viver. Não é o que acontece. A forma de ver o mundo não implica, pelo menos não diretamente, uma decisão. O ateísmo é uma atitude passiva diante da vida, enquanto o suicídio é uma atitude ativa. É normal que numa passagem da religião para o ateísmo surja a idéia de suicídio, mas a crise em si representa apenas o momento em que se abandona o velho otimismo e se passa a ver o mundo com outros olhos, com olhos tristes, da tristeza dos que perderam o gosto de viver, como diria Bandeira.
A tradição otimista-religiosa, no entanto, tende a subordinar O QUE vivemos a COMO vivemos. Explico: a idéia de que, se uma pessoa tem uma vida repleta de acontecimentos felizes, ela deve ser feliz, e só poderia manifestar tristeza ou desencanto caso ocorresse algum trauma. Tanto é assim que esta tradição pensa, que para impedir o suicídio a religião se utilizou da ameaça do inferno, rebatendo um suposto trauma com outro ainda maior, um trauma eterno, como se o suicida ainda guardasse algum tipo qualquer de medo.
Ora, uma posição de desencanto perante o mundo não exige nenhuma explicação psicológica, pois constitui o próprio estado normal de coisas, a inércia, daí que não há mérito algum em ser ateu. O ateísmo é apenas o ver a vida como ela é, mas já é alguma coisa, ao passo que o suicídio, ao contrário, é uma atitude que esconde a pretensão de que a vida seja o que ela não é. Logo, o modo COMO o ateu vive, por mais pessimista que seja, não impede que ele viva O QUE ele vive. Até porque a coragem para ser ateu, renunciando ao céu e enfrentando a possibilidade do inferno, não é nem de longe a coragem que alguém precisa ter para se matar, já que não se trata apenas da coragem para apertar o gatilho, mas antes da coragem para abandonar a vida em toda a sua inteireza e irrepetibilidade, se me permitem o neologismo.
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Otávio (ou o ateu militante
sofrendo de concepções freudianas)

sexta-feira, 11 de abril de 2008

quarta-feira, 9 de abril de 2008

Política


Vivia jogado em casa.
Os amigos o abandonaram
quando rompeu com o chefe político.
O jornal governista ridicularizava seus versos,
os versos que ele sabia bons.

Sentia-se diminuído na sua glória
enquanto crescia a dos rivais
que apoiavam a Câmara em exercício.

Entrou a tomar porres
violentos, diários.
E a desleixar os versos.
Se já não tinha discípulos.
Se só os outros poetas eram imitados.

Uma ocasião em que não tinha dinheiro
para tomar o seu conhaque
saiu à toa pelas ruas escuras.
Parou na ponte sobre o rio moroso,
o rio que lá embaixo pouco se importava com ele
e no entanto o chamava
para misteriosos carnavais.

E teve vontade de se atirar
(só vontade).

Depois voltou para casa
livre, sem correntes
muito livre, infinitamente
livre livre livre que nem uma besta
que nem uma coisa.
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Carlos Drummond de Andrade

segunda-feira, 7 de abril de 2008

ASTROFOBIA

um poema já antigo:

Quando li o signo dela
Em busca de coragem para amar
Descobri que tenho medo de escorpião
***
ps: aproveitem minha falta de criatividade, que pelo jeito deverá se estender por mais alguns dias, e leiam este texto.

quinta-feira, 3 de abril de 2008

Eu empírico


"- Quero seguir-te o esguio porte
Com toda a luz do meu olhar...
'Se tu bem vês que sou a morte,
Ah! morre então para eu te amar'"

Alphonsus de Guimaraens
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Tanto me idealizei
Que me fiz anjo

E de tal forma
Alma me tornei

Que um belo dia
Me encontraram morto

(Otávio)

terça-feira, 1 de abril de 2008

Quem é esse Mencken?

Jornalista americano do início do século XX. Quem me apresentou foi meu amigo, jornalista e aspirante a filósofo, Felipe Martynetz. Aí vão algumas linhas, começando pelo suicídio, é claro, que é o assunto que mais vale à pena, talvez o único que valha:

O número de suicídios está aumentando, disse-me outro dia um inteligente papa-defuntos. Sem dúvida, uma boa notícia para a sua profissão, combalida ultimamente pelos progressos da medicina e quase tanto pela feroz competição em suas próprias fileiras. É também uma boa notícia para aqueles românticos otimistas que gostam de acreditar que a espécie humana é capaz de atos racionais. O que poderia ser mais lógico do que o suicídio? O que poderia ser mais despropositado do que continuar vivo? No entanto, todos nos agarramos à vida com desesperada devoção, mesmo quando o que resta dela é palpavelmente frágil e cheio de agonia. Metade do tempo dos médicos é desperdiçado bombeando vida em cacos humanos, que não têm nenhuma razão inteligível para continuar vivendo...

Vejamos o que ele tem a nos dizer do filósofo...

Não há registro na história humana de um filósofo feliz: só existem nos contos da Carochinha. Na vida real, muitos cometeram suicídio; outros mandaram seus filhos porta afora e surraram suas mulheres. Não admira. Se você quiser descobrir como um filósofo se sente quando se empenha na prática de sua profissão, dê um pulo ao zoológico mais próximo e observe um chimpanzé na sua chatíssima e infindável tarefa de catar pulgas...

...e do homem de fé:

O homem de fé é aquele que simplesmente perdeu a capacidade para um pensamento claro e realista. Não que ele seja uma mula; é, na realidade um doente. Pior ainda, é incurável...

Mas o melhor é a sua Meditação de Sábado:

Às vezes chego a suspeitar de que meu principal problema é o fato de ser desprovido do que se costuma chamar de dons espirituais. Ou seja, sou incapaz de experiência religiosa, em qualquer sentido. Algumas cerimônias religiosas me interessam esteticamente e, com alguma freqüência, até me divertem, mas não extraio delas nenhum estímulo... Quando me sinto deprimido e cheio de miséria , não tenho o menor impulso de pedir ajuda, ou mesmo consolo, nos poderes sobrenaturais. Assim, a generalidade das pessoas religiosas continua um mistério para mim, além de vagamente insultuosa, assim como sou inquestionavelmente insultuoso a elas... Essa falta de compreensão tem-me causado inimizades, acredito que duradouras... Sou apenas um ateu militante e não tenho a menor objeção a que se vá a igrejas, desde que honestamente. Eu próprio já entrei em igrejas mais de uma vez, procurando sinceramente sentir o estlo de que tanto falam as pessoas religiosas. Mas nem mesmo na Catedral de São Pedro, em Roma, senti o mínimo sintoma do estalo... Como se vê, esta deficiência é uma desvantagem num mundo populado, em esmagadora maioria, por homens inerentemente religiosos. Isto me afasta de meus semelhantes e torna difícil para mim compreender muitas de suas idéias e não poucos de seus atos. Vejo-os responder, de maneira firme e constante, a impulsos que a mim parecem inexplicáveis. Pior ainda faz com que eles me compreendam, a ponto de me infligirem sérias injustiças. Não conseguem se livrar da idéia de que, por ser apático aos conceitos que os comovem profundamente, só posso ser um homem de tal aberração moral que devo ser mantido à distância. Nunca cruzei com um homem religioso que não revelasse essa suspeita. Não importa a sua sinceridade em tentar entender o meu ponto de vista, sempre termina por bater em alarmada retirada... Devo acrescentar que minha deficiência reside no impulso religioso fundamental, não na mera credulidade teológica... Entre minhas experiências curiosas, há alguns anos, houve a de tentar convencer um ardente católico que não acreditava na infalibilidade papal. Tratava-se de um fiel filho da igreja, e sua incapacidade para aceitar o dogma o angustiava. Provei-lhe, e ele pareceu satisfeito, que não havia nada de intrinsecamente absurdo na tal infalibilidade papal - já que, se os dogmas que ele tinha aceito fossem veradeiros, este provavelmente também o seria. Algum tempo depois, quando este homem estava nas últimas, fui visitá-lo e ele me agradeceu com aparente sinceridade por ter resolvido a sua velha dúvida. Mas nem ele conseguia compreender minha falta de religião. Suas últimas palavras para mim foram as de esperança de que eu abandonasse minha teimosia em relação a Deus e levasse uma vida mais pia. Morreu firmemente convencido de que eu estava condenado ao Inferno - e, o que é pior, tendo feito por merecê-lo.

(Mencken, O Livro dos Insultos, trad. Ruy Castro, Cia. das Letras)