quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Música popular cafona e ditadura militar

"...Na efervescência dos anos 70, o repertório popular romântico disputava o mercado com outro segmento musical, este sim, identificado às raízes e às vanguardas: a chamada MPB, composta em sua maioria por artistas metropolitanos, de origem na classe média e origem universitária, como Chico Buarque, Gilberto Gil e Edu Lobo. Embora atuando na mesma época, no mesmo país, na mesma ditadura e, por vezes, na mesma gravadora, os dois segmentos não se confundiam. (...) Propagou-se então a versão de que durante a ditadura militar apenas a elite da MPB teria se posicionado como crítica ou contestadora do regime e, por conseguinte, somente ela, no campo musical, teria sido vítima da censura. (...) Hoje é sabido que naquele período nem toda a MPB foi um bastião de resistência, nem toda 'música de empregada' foi escapista e inconsequente. À sua maneira, esta última também protestou contra a ordem estabelecida, produzindo mensagens de crítica social e comportamental que mobilizaram os aparelhos de repressão do regime..."
Paulo Cesar de Araújo, março de 2004

Entre as músicas do repertório:

Tortura de amor - Waldik Soriano (1974): "...Naquele ano a prática da tortura ainda era utilizada no combate a brasileiros suspeitos de atitudes subversivas ou terroristas. (...) Por certo a música de Waldik tocava numa ferida que o regime militar não queria ver exposta pela lente ampliadora da canção popular. Afinal, como anunciava uma reportagem de capa da revista Veja no início do governo Médici: 'O presidente não admite torturas'. E, pelo visto, nem de amor."

A galeria do amor - Agnaldo Timóteo (1975): "Ousada e polêmica, esta composição faz referência à Galeria Alaska, tradicional ponto de encontro de homossexuais no Rio de Janeiro. Formando uma travessia de cerca de 100 metros entre as avenidas Atlântica e Nossa Senhora de Copacabana, no Posto 6, Zona Sul carioca, a Galeria Alaska tornou-se famosa a partir dos anos 60, quando chegou a ser classificada como o maior reduto de gays do país. (...) E, segundo Timóteo, a inspiração para compor o tema surgiu de uma experiência vivida por ele na própria galeria. O sucesso da música foi imenso e abriu o caminho para o artista sair da sombra e revelar o seu avesso: o do homem frágil, dividido, fustigado pela prática do 'amor que não ousa dizer o nome', na expressão de Oscar Wilde."

Vou tirar você desse lugar - Odair José, com Caetano Veloso (1973): "Documento de uma época, esta faixa registra o encontro histórico de Caetano Veloso e Odair José cantando juntos o hit inspirado nas prostitutas da Praça Mauá. (...) Espécie de patinho feio incluído em uma festa que reunia a nata da MPB, Odair José não poderia deixar de causar reação em um público preso a preconceitos estéticos de sua formação de classe média. E, assim que subiu ao palco - atrapalhando o público que estava ali para ouvir Caetano Veloso -, o autor de Vou tirar você desse lugar se deparou com ruidosa vaia no Palácio das Convenções do Anhembi. Reagindo à intolerância da plateia, em um tom ao mesmo tempo irônico e irritado, Caetano desferiu uma das suas frases que se tornaria famosa: 'Não existe nada mais Z do que um público classe A'."

Adaptado de: Paulo Cesar de Araújo, responsável pela seleção de repertório do CD e autor do livro Eu não sou cachorro não - música popular cafona e ditadura militar (Ed. Record, 2002), no qual as informações do encarte se encontram aprofundadas e detalhadas.

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Estamira

Quem andou com Deus dia e noite,
noite e dia na boca ainda mais com os
deboches, largou de morrer? Quem fez
o que ele mandou, o que o da quadrilha
dele manda, largou de morrer? Largou
de passar fome? Largou de miséria? Ah,
não dá! Não adianta! Ninguém, nada vai
mudar meu ser.

A doutora passou remédio pra raiva. Eu fiquei
muito decepcionada, muito triste, muito
profundamente com raiva dela falar uma coisa
daquela. E aí ela ainda disse sabe o quê?
Que Deus que livrasse ela, que isso é magia,
telepatia e o caralho. Porra, porra, porra.
Pra quê, pô? Ela me ofendeu demais da quantia.

Engraçado, eu não sei se é, por incrível
que pareça, a palavra certa, o que eu
mais sinto falta na minha vida é a minha
mãe. O que eu mais lembro na minha
vida, minuto por minuto, é a minha mãe.
Um dia a minha mãe me perguntou assim,
"neném, você já viu eles?" Eu falei, "que
eles?" Ela falou, "eles é uma porção
deles". Era os astros que atentavam
ela. Os astros ofensível, negativo, que
atentava ela. Eu sou do astro positivo,
eu não sou do astro negativo. Eu sou do
astro positivo útil.

"Atesto que Estamira Gomes de Souza,
portadora de quadro psicótico de evolução
crônica, alucinações auditivas, ideias
de influências, discurso místico, deverá
permanecer em tratamento psiquiátrico
continuando, continuado."
É, bem, deficiência mental eu acho que tem
é quem é imprestável, né? Ora, quem tem
problema mental, bem, perturbação também
é, né? Perturbação, depois eu tive pensando,
perturbação também é, mas não é deficiência,
né? Perturbação é perturbação, qualquer um
pode ficar perturbado.

Eu, Estamira, eu não concordo com a vida;
eu não vou mudar o meu ser, eu fui visada
assim, eu nasci assim, e eu não admito as
ocorrências que existe, que tem existido com
os seres sanguíneos, carnívoros, terrestre.

Trechos de "Estamira: fragmentos de um mundo em abismo", livro-fotograma baseado no documentário homônimo de Marcos Prado.

domingo, 16 de novembro de 2014

Minha Grande Ternura

Minha grande ternura
Pelos passarinhos mortos;
Pelas pequeninas aranhas.

Minha grande ternura
Pelas mulheres que foram meninas bonitas
E ficaram mulheres feias;
Pelas mulheres que foram desejáveis
E deixaram de o ser.
Pelas mulheres que me amaram
E que eu não pude amar.

Minha grande ternura
Pelos poemas que
Não consegui realizar.

Minha grande ternura
Pelas amadas que
Envelheceram sem maldade.

Minha grande ternura
Pelas gotas de orvalho que
São o único enfeite de um túmulo.

Manuel Bandeira

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Estrambote Melancólico


Tenho saudade de mim mesmo,
saudade sob aparência de remorso,
de tanto que não fui, a sós, a esmo,
e de minha alta ausência em meu redor.
Tenho horror, tenho pena de mim mesmo
e tenho muitos outros sentimentos
violentos. Mas se esquivam no inventário,
e meu amor é triste como é vário,
e sendo vário é um só. Tenho carinho
por toda perda minha na corrente
que de mortos a vivos me carreia
e a mortos restitui o que era deles
mas em mim se guardava. A estrela-d'alva
penetra longamente seu espinho
(e cinco espinhos são) na minha mão.

Carlos Drummond de Andrade

quinta-feira, 29 de maio de 2014

Sobre a "aposta" de Pascal

"Muitos leitores de Letter to a Christian Nation inspiraram-se em Pascal para argumentar que a evidência está fora de questão e que fiéis religiosos simplesmente escolhem a mais sábia de duas opções: se um fiel está errado sobre Deus, não há muito dano para ele ou para outros, e se ele está certo, ele ganha a felicidade eterna; se um ateu está errado, entretanto, ele está destinado a passar a eternidade no inferno. Nesta visão, o ateísmo é o retrato da mais irresponsável estupidez. Embora Pascal mereça sua reputação como matemático brilhante, sua aposta nunca foi mais do que uma atraente (e falsa) analogia. Como muitas ideías atraentes em filosofia, é facilmente lembrada e frequentemente repetida, e isto a emprestou um imerecido ar de profundidade. Uma reflexão rápida revela que se a aposta fosse válida, poderia justificar quase todo e qualquer sistema de crença, independente de quão grotesco e contrário à Cristandade ele seja. Outro problema com a aposta - e é um problema que geralmente infesta o pensamento religioso - é sua sugestão de que uma pessoa racional pode conscientemente querer acreditar no que não acredita, isto é, numa proposição para a qual não tem qualquer evidência. Uma pessoa pode professar qualquer crença que queira, é claro, mas para realmente acreditar nela, ela deve acreditar que ela é verdadeira. Acreditar que há um Deus, por exemplo, é acreditar que você não está apenas se iludindo; é acreditar que você está numa relação com respeito à existência de Deus tal que, se Ele não existisse, você não acreditaria nele. Como a aposta de Pascal se encaixa neste esquema? Não se encaixa." (do posfácio a uma das edições de "Letter to a Christian Nation", de Sam Harris).

quarta-feira, 2 de abril de 2014

O golpe à distância

"As mudanças no Brasil causaram tamanha ansiedade em meus companheiros que muitos deles tiveram de ser acalmados com medicamentos e outros não o foram nem depois de medicados. Quase todos eram casados, com muitos dependentes, viviam de modestos salários ou dos proventos de escassas aposentadorias. Viajando, tinham deixado as famílias aos cuidados do partido ou de sindicatos cujos dirigentes eram comunistas. Com o partido na clandestinidade e os sindicatos inoperantes ou sob intervenção, temiam, com razão, pelo bem-estar dos seus. Alguns pediram para voltar. Os funcionários do PCUS que atuavam no instituto não consentiram: ainda que não fossem identificados pelo plantão policial dos aeroportos - e o seriam, lá estavam seus nomes e fotografias -, sempre acabariam na prisão, tão ou mais imobilizados do que em liberdade num país longínquo. Foi então que se persuadiram da imprudência dos camaradas do Rio de Janeiro, tirando as passagens para a URSS - uma ideia, quem sabe, produzida pelo mesmo cérebro que concebera as fichas cadastrais.
"E estas, que fim teriam levado? Em que mãos estariam nossos nomes, endereços, telefones e o declarado grau de dedicação ao Partido?
Brizola, que apoia Jango (dir.) em 61 e, como ele, exila-se em 64



Não podíamos enviar cartas aos familiares, sob pena de comprometê-los, e não era crível que eles se atrevessem a escrevê-las, postando-as para Moscou. Telefone nem pensar. Nos anos sessenta, uma chamada da União Soviética para o Brasil demandava uma espera de dez ou mais horas, sem a certeza de que a ligação seria completada. A impossibilidade de comunicação fez com que, para muitos, a ansiedade se convertesse em desespero, e as notícias que recebíamos em nada contribuíam para minorá-lo, alternando de tal modo boas e más perspectivas que já ninguém sabia o que pensar. Dizia-se que Leonel Brizola ia reeditar a Legalidade no Rio Grande, em seguida a agência Prensa Latina divulgava que, em Recife, o dirigente comunista Gregório Bezerra fora preso e arrastado pelas ruas; a imprensa de Moscou aludia a focos guerrilheiros que se disseminavam, resistindo à mudança, e logo nos abalava a informação de que a polícia apreendera uma caderneta de Prestes com endereços e telefones, daí resultando a prisão de membros do Comitê Central.
"Dias depois do Golpe chegou a Moscou um médico que fugira do Brasil, e os funcionários o conduziram ao alojamento para conversar conosco. Ele garantiu que a contravolta era iminente, mas ninguém acreditou. Se a conjuntura era favorável, porque tratara de raspar-se, ao invés de ajudar os companheiros que agora se esfalfavam na clandestinidade? Qualquer esperança que tivéssemos deixou de existir quando soubemos que Brizola seguira os passos do cunhado e também se exilara.
"Ainda em abril [de 1964] a direção do instituto anunciou providências para restabelecer o contato com as famílias. As cartas seriam remetidas ao Brasil na mala diplomática e postadas no correio brasileiro pelo pessoal da Embaixada Soviética, com novos envelopes. As minhas nunca chegaram. Como no filme de Gabriele Salvatores, Mediterrâneo, amarelaram na gaveta de algum Sargento Lo Russo. (...)"

Sérgio Faraco, "O golpe à distância", em Lágrimas na Chuva: uma aventura na URSS. Porto Alegre: L&PM, 2011, p. 34-36.

Foto tirada no Museu da República, Rio de Janeiro (exposição A Res Publica).

A primeira edição do livro de Faraco é de 2002, ano de que data a seguinte introdução:

"Eu jamais conseguira escrever sobre o tempo em que vivi em Moscou. Pouco depois da volta ao Brasil, em 1965, tentei fazê-lo e o trabalho não prosperou, talvez porque minhas emoções ainda estivessem muito cruas e desordenadas. No mesmo ano fui preso em Porto Alegre pela Interpol. Enquanto estive recolhido à antiga sede dessa polícia, na Praça do Portão, os agentes forçaram a porta do meu apartamento no Hotel Carraro e apreenderam todos os meus papéis: cartas, fotografias, e parte do relato que, bem ou mal, eu começara a desenvolver. Usaram-no para me interrogar e aquelas páginas, para mim, tornaram-se pouco menos que malditas.
"Mais tarde, em Alegrete, publiquei meus primeiros contos. Meu tio, o médico Eduardo Faraco - que foi reitor da UFRGS -, mostrou-os a Erico Verissimo, que em seguida me escreveu, convidando-me a visitá-lo em Porto Alegre. Eu o fiz. Ele me perguntou se não pensava escrever sobre minha estada na União Soviética. Respondi que, de fato, tinha essa intenção, embora minha experiência não fosse edificante. Ele ficou pensativo, depois disse que, se era assim, talvez fosse ainda menos edificante narrá-la enquanto vivíamos, no Brasil, sob uma ditadura militar. Ele tinha razão.
"Dos anos setenta aos noventa não pude voltar àquele passado, era a época da minha ficção, mas ele continuava a palpitar, fazendo-se lembrar a cada instante como um outro corpo dentro do meu corpo. Tinha eu o direito de matá-lo? Ou de permitir que morresse com minha morte?
"No filme de Ridley Scott, Blade Runner, o androide Roy Batty, na agonia da morte, evoca sua atuação em remotas paragens do Universo: 'Eu vi coisas que vocês nunca acreditariam. Naves de ataque em chamas perto da borda de Orion. Vi a luz do farol cintilar no escuro na Comporta Tannhäuser. Todos esses momentos se perderão no tempo como lágrimas na chuva'.
"Vi menos, mas vi, e aquilo que vi, num quitalejo de angústias terrestres, há de se perder no tempo pelos meus defeitos de escritor e não por ter deixado de narrá-lo. O relato, aqui, começa na viagem de ida e termina na viagem de volta. Mas a história que, durante tantos anos, tive de sufocar como a um grito, essa história não termina aqui."

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Parceria


Destino*

E se nossos signos não combinam
Melhor nem tentar
Se nossos filhos não podem
Ter olhos azuis
É melhor esquecer
E se deus não quis
E o diabo não gosta:
Não era pra ser

(Otávio)

*poema adaptado por Rodrigo Madeira na canção risca-faca.