sábado, 19 de dezembro de 2015

Feliz ano velho (o verdadeiro)

...de repente, entrou um bando de gente cantando e tocando violão. Foi aí que me dei conta:

Dingo bel, dingo bel
Já chegou Natal
Lá lá lá...

Fiquei contente com as pessoas. Elas queriam, e conseguiram, transmitir uma felicidade, um espírito de Natal, um vamos-nos-dar-as-mãos que me deixou emocionado. Nunca fui muito de Natal, exceto quando criança, óbvio. Mas aquele dia a música me deixara feliz, feliz por saber que jamais teria outro Natal tão triste como aquele. Por saber, também, que, apesar de tudo, ainda existia Natal. E descobri que Natal é isso mesmo. Por que não um momento de ternura e amizade com as outras pessoas, mesmo levando uma vida fodida o ano inteiro?

(...)

...essa noite, pouco antes da meia-noite, acordei com fogos e gritaria na rua. Era Ano-Novo. E mudança de década: 1980. Não haveria champanhe, serpentinas ou abraços. Eu estava só.
- Feliz Ano-Novo, Marcelo.
- Pra você também, Marcelo.
Admirava a alegria das pessoas na rua, uma alegria da qual não fazia parte. Estava triste e só.

Adeus Ano Velho, feliz Ano-Novo

Não tinha o mínimo sentido. As lágrimas rolaram, chorei sozinho, ninguém poderia imaginar o que eu estava passando. Nada fazia sentido. Todos sofriam comigo, me davam força, me ajudavam, mas era eu que estava ali deitado, e era eu que estava desejando minha própria morte. Mas nem disto eu era capaz, não havia meio de largar aquela situação. Tinha que sofrer, tinha que estar só, tão só, que até meu corpo me abandonara. Comigo só estavam um par de olhos, nariz, ouvido e boca.

Feliz Ano Velho, adeus Ano-Novo

Foi o que eu prometi a mim mesmo. "Se eu não voltar a andar, darei um jeito qualquer pra me matar." Era bom pensar assim. Eu não tinha medo de morrer. Era muito mais fácil a morte que a agonia daquela situação.
- Parabéns, Marcelo. Foram vinte anos bem vividos. Deixará muitas saudades, alguns bons amigos, umas fãs. Fique tranquilo...

(Marcelo Rubens Paiva, "Feliz Ano Velho")

sábado, 29 de agosto de 2015

Amnésia (durante a queda)*


Durante a queda, esqueci o porquê de ter pulado do décimo quinto andar da previdência social. Eu estava desempregado? Estava. Há milhões de desempregados pelo país a fora, mas só eu estava caindo. Falhara em conquistar o amor de Hilda? Falhara. Há milhões de malsucedidos no amor, mas só eu caía. Por mais que me esforçasse, não conseguia lembrar por que eu pulara. Apelei para os céus:
- Por queeeeeeeeê?
A queda transformou meu apelo em um horrendo grito. A pergunta e a angústia, portanto, continuavam, como eu, no ar, por muito pouco. Porque o tempo nos impõe mais limites que o desespero, a falta de dinheiro ou o desejo. E na queda, como na vida, o tempo se esgota antes da resposta. (Walther Moreira Santos. Em: Geração Zero Zero. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2011.)

*Conto transcrito do programa Leitura Viva, com Flávio Stein, da rádio lumen fm.

Citação

"...Às vezes eu gritava perguntas às rochas e às árvores e através dos desfiladeiros, ou cantava como um tirolês. - 'O que significa o vazio?' A resposta era o silêncio perfeito, e então eu entendia.
Antes de deitar, lia à luz do candeeiro de querosene todo e qualquer livro que encontrasse no barraco. - É surpreendente como as pessoas isoladas ficam famintas por livros. - Depois de ler detidamente todas as palavras de um volume de medicina e as versões resumidas de peças de Shakespeare feitas por Charles e Mary Lamb, subi para o pequeno sótão e juntei velhos livros de bolso de caubóis e revistas que os ratos tinham destroçado - também joguei pôquer com três jogadores imaginários.
Pouco antes de deitar, aquecia uma xícara de leite com uma colher de mel quase a ferver, e esse era o meu trago para a hora de deitar..." (Jack Kerouac, Sozinho no topo da montanha)

sexta-feira, 8 de maio de 2015

Não seja professor (por Vladimir Safatle)

Quem escreve este artigo é alguém que é professor universitário há quase 20 anos e que gostaria de estar neste momento escrevendo o contrário do que se vê obrigado agora a dizer. Pois, diante das circunstâncias, gostaria de aproveitar o espaço para escrever diretamente a meus alunos e pedir a eles que não sejam professores, não cometam esse equívoco. Esta "pátria educadora" não merece ter professores.
Um professor, principalmente aquele que se dedicou ao ensino fundamental e médio, será cotidianamente desprezado. Seu salário será, em média, 51% do salário médio daqueles que terão a mesma formação. Em um estudo publicado há meses pela OCDE, o salário do professor brasileiro aparece em penúltimo lugar em uma lista de 35 países, atrás da Turquia, do Chile e do México, entre tantos outros.
Mesmo assim, você ouvirá que ser professor é uma vocação, que seu salário não é assim tão ruim e outras amenidades do gênero. Suas salas de aula terão, em média, 32 alunos, enquanto no Chile são 27 e Portugal, 8. Sua escola provavelmente não terá biblioteca, como é o caso de 72% das escolas públicas brasileiras.
Se você tiver a péssima ideia de se manifestar contra o descalabro e a precarização, caso você more no Paraná, o governo o tratará à base de bomba de gás lacrimogêneo, cachorro e bala de borracha. Em outros Estados, a pura e simples indiferença. Imagens correrão o mundo, a Anistia Internacional irá emitir notas condenando, mas as principais revistas semanárias do país não darão nada a respeito nem do fato nem de sua situação. Para elas e para a "opinião pública" que elas parecem representar, você não existe.
Mais importante para elas não é sua situação, base para os resultados medíocres da educação nacional, mas alguma diatribe canina contra o governo ou os emocionantes embates entre os presidentes da Câmara e do Senado a fim de saber quem espolia mais um Executivo nas cordas.
No entanto, depois de voltar para casa sangrando por ter levado uma bala de borracha da nossa simpática PM, você poderá ter o prazer de ligar a televisão e ouvir alguma celebridade deplorando o fato de o país "ter pouca educação" ou algum candidato a governador dizer que educação será sempre a prioridade das prioridades.
Diante de tamanho cinismo, você não terá nada a fazer a não ser alimentar uma incompreensão profunda por ter sido professor, em vez de ter aberto um restaurante. Por isso o melhor a fazer é recusar-se a ser professor de ensino médio e fundamental. Assim, acordaremos um dia em um país que não poderá mais mentir para si mesmo, pois as escolas estarão fechadas pela recusa de nossos jovens a serem humilhados como professores e a perpetuarem a farsa. (Folha de S. Paulo, 05-05-2015, disponível aqui).

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Ainda a ditadura

Caracteriza-se [a tortura em caso de violência sexual] como os atos de natureza sexual cometidos contra uma pessoa sem seu consentimento. Abrange tanto a violação física do corpo humano – a penetração vaginal, anal ou oral, com partes do corpo do agressor ou com objetos – como os atos que não imponham penetração ou sequer contato físico, como o desnudamento forçado e a revista íntima. Estaria aí contemplado também o uso de animais nas genitálias, como atestam relatos prestados à CNV.
Relatório final da Comissão Nacional da Verdade,
Volume I, Parte III, Capítulo 7, p. 286,
disponível aqui.

Estou lendo "Cartas da prisão, 1969 a 1973", de Frei Betto (Ed. Agir, 2008), que reúne cartas escritas pelo autor durante a ditadura militar brasileira, de dentro dos presídios nos quais ficou. De maneira fragmentada, como é de se esperar deste estilo de texto, as cartas registram, entre outras coisas, a atuação de Paulo Evaristo Arns como arcebispo de São Paulo, na defesa dos direitos humanos, que acabou levando à organização do livro "Brasil: nunca mais" (Ed. Vozes, 1985). Confirmam também, por exemplo, relatos de outro dominicano, o Frei Tito, registrados no filme Brazil: a report on torture.  Segue então uma pequena amostra das linhas escritas por Frei Betto:

"Hoje é domingo, chuvoso e triste. Cinquenta presos se acomodam como podem pela cela. Muitos dormem no chão, sobre colchões; não há mais espaços para camas. O silêncio reflete o clima úmido desse dia cinza. Não é um silêncio de calma, de paz interior. É quase uma sufocação. Tantos juntos e poucos falam. Alguns talvez gostassem de gritar bem alto. Mas engolem esse desejo e aguardam. O quê? Não sei, ninguém sabe. Na prisão sempre se aguarda. É como a plataforma de uma estação sem trens e trilhos.
"É um silêncio triste, de alguém que, sentindo-se provocado, resiste, acumula forças para uma investida posterior. Sentimos nossa impotência. Nada a fazer, ninguém pode ajudar. Não é fossa, porque não chegamos ao desânimo. Nem ódio, pois não há desespero. Talvez raiva, uma raiva muda, paciente, diante desse labirinto do absurdo que se nos apresenta.
"(...) Ele estava bem, alegre, tranquilo, recuperado do que havia sofrido no DEOPS. Bem como todos nós, livres da fase de interrogatórios. Pouco implicado, aguardava o momento de o colocarem em liberdade. Mas veio o DOI-CODI e o levou. Isso há pouco mais de uma semana. Por quê? Ninguém soube responder, nem ele mesmo na hora de sair. Esperávamos a sua volta para o dia seguinte. Não voltou. Passaram-se os dias e ele foi ficando. Ficando naquele lugar que os próprios militares chamam de 'sucursal do inferno'.
"Hoje, soubemos que frei Tito de Alencar Lima 'tentou suicídio' no DOI-CODI... Levado ao Hospital Militar, recebeu transfusões de sangue, mas continua incomunicável. Ninguém consegue visitá-lo, nem ao menos saber o que se passa exatamente com ele. O núncio apostólico, dom Umberto Mozzoni, que nos visitou ontem, tentou vê-lo e foi barrado.
"Por isso estamos em silêncio. Amanhã o mesmo pode ocorrer com qualquer um de nós. Não temos nenhuma proteção ou garantia. Como judeus e comunistas condenados pelo nazismo. Os tempos mudam, a maldade perdura, a opressão recebe novos nomes e novas formas. Nosso silêncio é o mesmo de Maria diante de seu Filho." (Carta a Christina, 22/fev/1970)

*DEOPS: Departamento Estadual de Ordem Política e Social.
**DOI-CODI: Destacamento de Operações e Informações - Centro de Operações de Defesa Interna
*** Frei Tito morreu em 1974, no exílio. Mais a respeito, aqui.