segunda-feira, 23 de julho de 2007

A priori e outros jargões

Se Kant é o responsável, ou melhor, o culpado, pelo apriorismo da razão e constitui o que se pode chamar de pedra de toque da filosofia contemporânea, pode-se dizer que todo “filósofo”, hoje, usa o termo a priori, mas nem todo aquele que usa o termo a priori é “filósofo” (atualmente, pelo menos no Brasil, todo filósofo deveria levar aspas, devemos nos contentar com o termo “comentador”, mas pode ser sem aspas). O fato é que palavras como a priori são excelentes para excluir interlocutores não especializados, bem como aqueles cuja referência máxima em filosofia é Dee Pak Choppra.
É equivalente a jargões da medicina, da psicologia e, por que não?, da tornearia mecânica. E é claro que onde há jargões há equívocos. Num hospital, é impossível morrer, o máximo que pode acontecer é você entrar em óbito, estilo:
- A senhora é a esposa de João Dias?
- Sim, por quê?
- Porque os dias dele estão contados! Desculpe, minha senhora, mas eu não pude evitar o trocadilho. Acontece que ele pode entrar em óbito.
- E isso é bom ou ruim?
- Depende, ele é um bom sujeito?
- Sim.
- Neste caso, é ruim.
- Bom, desde que ele não morra...
Da mesma forma, se você for a um dentista querendo ARRANCAR um dente:
- Olha, o que a gente faz é EXTRAIR o dente, mas se você quiser eu falo com um amigo boxeador, o Sergião mão-de-ferro...
Um leiturista da Sanepar que, ao invés de perguntar pelo relógio da água, pergunta pelo hidrômetro:
- Ih! Meu filho, aqui não tem essas coisas modernas não.
- Não, minha dona, é o hidrômetro da água.
- Ora, se é hidrômetro só podia ser de água! Fica logo ali, descendo pra baixo.
- Obrigado. A propósito, isso que está tocando é MPB brasileira?
Por sua vez, um psicólogo não trata de usuários de drogas, mas do que eles, delicadamente, chamam de drogadito. Não seria de se estranhar uma mãe que chegasse com o filho:
- Quem entra primeiro, eu ou ele?
- O drogadito.
- Ah, si. Pero yo no sabía que usted hablava español...
No caso do a priori, parece indicar, para o leigo (ou, se quisermos, para o vulgo), uma certa anterioridade, tipo:
- Felipe Massa chega a priori mais uma vez, enquanto Rubinho fica a posteriori.
Sim, trata-se de uma piada acadêmica, mas é este o conceito que Galvão Bueno tem, como deu a entender na narração do jogo de basquete feminino, entre Brasil e Jamaica, pelo Pan:
- O áudio aqui está excessivamente alto, então nós já pedimos desculpas a priori.
Sentiu só? Pior que isso, só Dee Pak Choppra.

(Otávio)
Para os curiosos:


























FIGUEIREDO, Vinícius (organizador). Seis filósofos na sala de aula. São Paulo: B&V, 2006

domingo, 22 de julho de 2007

que explica o post anterior

a gente (quase) sempre entra no blog querendo postar alguma coisa que, no fim das contas, é autobiográfico, eu estava resolvido a entrar no meu e postar mais um texto meu, mesmo sabendo que poesia é algo difícil de gostar, mas folheando o último "rascunho", encontrei umas poesias de José Luís Peixoto, na página 22, gostei. A página 30 também tem um texto interessante sobre poesia, que ilustra bem os autores desconhecidos achados na estante da biblioteca naqueles papéizinhos para anotação, com seus haicaizinhos curitibanos. Enfim, poesia é algo difícil de gostar, e eu gosto quando consigo gostar de alguma. José Luís Peixoto:

"esse filho só de sangue que te escorre pelas pernas sou eu, podíamos ter ensinado a ele as palavras, mas o seu nome é agora de sangue. podíamos ter mostrado a ele o céu, mas o seu olhar é agora de sangue. podíamos ter fechado sua mão pequena dentro da nossa, mas a sua mão é agora de sangue. esse filho só de sangue que te escorre pelas pernas e morre sou eu, o meu sangue e a minha memória".

Solução e outros poemas

Solução
(para Décio Pignatari)

diluirmEMimmesmo

(Otávio)
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Achado na biblioteca
Cafezinho quente
denuncia o friozinho
logo de manhã
(Autor desconhecido)
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Palavras
as tuas mãos, ou a tua pele, ou os teus lábios.
o teu olhar. o teu olhar me lembra sempre que
ou o teu cabelo, ou a maneira exata como
o teu rosto. o teu rosto. ou o teu corpo que
adormece onde o vento não se esqueceu de
ou cada uma das tuas palavras, palavras,
palavras numa língua de céus impossíveis.
José Luís Peixoto

terça-feira, 17 de julho de 2007

e por falar em cão...

O filme de 1966 "um homem, uma mulher", de Claude Lelouch, é música para os olhos (não que seja um musical, mas a trilha sonora é lindíssima - talvez porque, depois da brasileira, a música francesa seja a mais bela - e ademais música para os olhos é força de expressão). Enfim, quando se gosta muito de um filme, é melhor não falar dele, mas antes citá-lo:

"- Veja esse homem com o cão. Têm o mesmo andar.
- Conhece o escultor Giacometti?
- Sim, aprecio-o.
- Ele disse uma frase extraordinária: 'Se num incêndio eu tivesse de escolher entre um Rembrant e um gato, salvaria o gato'.
- 'E depois o soltaria', acrescentou. É maravilhoso.
- Sim, é belo. Entre a arte e a vida, prefere a vida.
- Formidável. ...Por que me perguntou?
- Sobre Giacometti?
- Por causa daquele homem com o cão."


E você, escolhe qual?








Danae (Rembrant, 1636)








ou o gato?

quinta-feira, 12 de julho de 2007

citação

E quem não se emociona com o momento d'O Estrangeiro em que o velho Salamano, vizinho do narrador/personagem Mersault, perde o único amigo, seu cão: parceiro de quarto e de feridas?

"[...]De longe, distingui na soleira da porta o velho Salamano, com um ar agitado. Quando nos aproximamos, reparei que não estava com o cão. Olhava para todos os lados, dava voltas em torno de si mesmo, tentava penetrar com os olhos na escuridão do corredor, resmungava palavras sem nexo e recomeçava a observar a rua com os seus olhinhos avermelhados. Quando Raymond lhe perguntou o que havia, não respondeu logo. Ouvi vagamente que ele murmurava: "imundo, nojento" e continuava a agitar-se. Perguntei-lhe onde estava o cão. Respondeu-me bruscamente que fora embora. E, depois, de repente, falou de novo, rápido:
- Levei-o, como de costume, ao Campo de Manobras. à volta dos barracos da feira, havia muita gente. Parei para olhar o Rei da Evasão. E, quando quis ir embora, ele já não estava mais lá. Há muito tempo que eu queria comprar uma coleira menor. Mas nunca pensei que esse cão nojento fosse embora assim. [...] Vão tomá-lo de mim, compreende. Pelo menos se alguém o recolhesse... Mas não! Com aquelas feridas enoja todo mundo. A carrocinha vai apanhá-lo, tenho certeza.[...]
Convidei-o a entrar, mas ele não quis. Olhava para as pontas dos sapatos e as mãos cheias de crostas tremiam. Sem me encarar, perguntou-me:
- Não vão tirá-lo de mim, não é, Sr. Mersault? Vão devolvê-lo, não vão? Senão, o que vai ser de mim?[...] (trecho de "O estrangeiro" de Albert Camus)

sábado, 7 de julho de 2007

Algodão-doce


em memória de Anton Tchekhov


Um menininho, com um cesto cheio de pés-de-moleque preso por uma corda à nuca, anuncia seu produto à fila do ônibus:

- Olha o algodão-doce, leva algodão-doce.

As pessoas, sem entender, olham os pés-de-moleque e não conseguem conter a risada, mas ele prossegue:

- Quem vai querer algodão-doce? Um real...

À frente do ônibus, o cobrador conversa distraído com o motorista.

- Algodão-doce, moço?

O cobrador volta o olhar apressado insinuando uma recusa mas, ao segundo olhar, abandona o motorista e exclama:

- Algodão-doce?! - e cai numa gargalhada boçal, com direito a mão na barrigona e saliva nos cantos da boca, cada vez mais alto.

O menininho, ele sim sem entender, encolhe os ombros, abaixa a cabeça e, quando a levanta novamente, tem nos olhos úmidos um brilho que corta a penumbra do terminal.

A risada reverbera.

(Otávio)