sábado, 15 de dezembro de 2012

Dezembro

foto por ricardo pozzo
Foi durante o seu terceiro sumiço, e eu nem imaginava que você voltaria e que sumiria de novo. Eu sentia muito a sua falta. Levantei-me mais cedo no sábado e fui até o teatro. Entrei e me sentei, considerei os meus problemas, a minha angústia de fim de ano. Lembrei-me de quando você, por qualquer motivo, costumava dizer “está tudo bem”, e estas palavras tinham um poder mágico sobre mim. Só você podia me dizer esta frase sem que ela fosse falsa. Pensei em fazer um poema ou coisa assim, qualquer coisa em que eu pudesse dizer: “eu só quero ouvir você me dizer que está tudo bem”, mas foi mais um dos textos que eu comecei só na minha cabeça e rasguei já na minha cabeça. Foi um dos seus mais longos sumiços e eu mal podia imaginar que você voltaria. Mas você voltou. Voltou e disse que tudo não passou de um grande mal-entendido. Você tinha esse jeito de achar as coisas simples, a vida simples, e eu me sentia intimamente reconfortado. Lembrei-me então daquela manhã no teatro: eu finalmente começava a me convencer de que estava tudo bem. Mas esta vez que você voltou durou pouco: dois estranhos que se encontram no ponto de ônibus e compartilham a indignação da demora, duas pessoas que se escondem da chuva embaixo da mesma marquise. E então o ônibus chega, a chuva passa, e não há nada que a gente possa fazer. Durou pouco, e quando você voltou pela quarta e última vez, eu lhe deixei sem resposta, porque eu tinha medo das palavras que se seguiriam. Estas palavras estão dentro de você, talvez passe um ano, dois, e você as esqueça, e eu pare de imaginá-las. E talvez um dia alguém me diga que está tudo bem e eu me sinta intimamente reconfortado e me lembre de você. Ou talvez não me lembre. (07/12/2010)

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

The stranger

Vai fazer duas semanas que cheguei nos Estados Unidos e foi o suficiente pra eu sentir vontade de escrever, digo, essa vontade de narrar os fatos a todos e a ninguém. Como diria Drummond: "preciso de todos", ele que se expunha "cruamente nas livrarias". Escrevo de uma espécie de praça de alimentação na Michigan Union, um prédio do Campus Central da Universidade de Michigan em Ann Arbor, cidade vizinha a Detroit, que foi por onde eu entrei no país. Já na saída de Guarulhos, fiquei meio assustado com o hello, welcome; hello, welcome na entrada do avião, meu inglês definitivamente não é dos melhores. Perguntei em português ao passageiro do meu lado onde era o banheiro, ele disse I don't understand, então criei coragem e perguntei à aeromoça: excuse me, is there a restroom here?. É estranho falar inglês fora de uma aula de inglês. No desembarque em Detroit, depois de caminhar um bom pedaço por um corredor, pedi informação a um funcionário do aeroporto que me mostrou a fila dos visitantes e esclareceu: lugagge after inspection. Então foi só passar pela inspeção, pegar a bagagem e passar pela alfândega. Em seguida, após me informar numa casa de câmbio, sentei num banco à espera do ônibus que me traria a Ann Arbor. Alguém me perguntou algo sobre o jogo de futebol americano do dia anterior, ao que respondi com aquela frase que viria a repetir algumas vezes: I'm a stranger here, sorry, não sem gaguejar um pouco. Logo embarquei no ônibus da Michigan Flyer que me deixou no centro de Ann Arbor, onde desci empunhando duas folhas impressas do google maps. Com a ajuda do motorista, então, consegui localizar uma das principais ruas da cidade: a South State Street. Depois disso, tudo correu bem, me instalei, tomei um banho, e no dia seguinte pude conhecer melhor a cidade. O café aqui, em confirmação do que eu já havia lido num guia de viagem, é meio fraco, deve ser por isso que vem em copos bem grandes. Tanto melhor: assim tenho uma razão a mais pra me demorar nos cafés, que são lugares agradáveis e aquecidos, provavelmente bons refugios para quando a neve chegar, e/ou em eventuais sensaçoes de exílio. "Vivendo muito tempo num lugar estranho - diz Tim Maia, na canção 'Neves e Parques' - a gente tem medo de pensar / que nao volta pra casa nunca mais". E por falar em exílio, achei num sebo um livro cujo título estava curioso pra saber se aqui seria The foreign ou The stranger, agora eu sei que é The stranger e se encontra disponível em duas versões: uma britânica e outra americana, mais recente, que não hesitei em comprar. Como diz o tradutor, Matthew Ward, "Camus reconheceu empregar um 'método americano' ao escrever 'O estrangeiro', em especial na primeira parte do livro: as curtas, precisas sentenças..." (Camus acknowledged employing an 'American method' in writing 'The Stranger', in the first half of the book in particular: the short, precise sentences...). Só espero que depois não digam que eu voltei americanizado...

quinta-feira, 21 de junho de 2012

O escafandro, a borboleta e a síndrome de locked-in

Como se não bastassem os livros que estão na minha ‘fila’, há aqueles que a furam e me caem magneticamente nas mãos. Digo isso porque estou gostando muito de ler “O escafandro e a borboleta” (disponível em pdf), espécie de diário/biografia de Jean-Dominique Bauby após sofrer um acidente vascular cerebral que o deixou com a síndrome de locked-in, na qual, “paralisado dos pés à cabeça”, para usar as palavras do autor, “o paciente fica trancado no interior de si mesmo com o espírito intato”. E foi assim que ele escreveu o livro, “tendo os batimentos de sua pálpebra esquerda como único meio de comunicação”. Em todo caso, quero deixar claro que o livro é auto-explicativo e bem que dispensa esta minha apresentação. Sem mais, então, seguem algumas linhas do mesmo:
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Tive despertares mais suaves. Quando recobrei a consciência, naquela manhã de fim de janeiro, um homem estava inclinado sobre mim e costurava minha pálpebra direita com linha e agulha, como se remendasse um par de meias. Fui dominado por um medo irracional. E se o oftalmo me costurasse também o olho esquerdo, único vínculo meu com o exterior, único respiradouro do meu cárcere, a viseira do meu escafandro? Por sorte não fui imerso na noite. Ele arrumou com cuidado o seu materialzinho em caixas de metal forradas de algodão e, com jeito de promotor que exige pena exemplar para um reincidente, despachou: “Seis meses”. Com meu olho válido, multipliquei os sinais interrogadores, mas o homenzinho, mesmo passando seus dias a perscrutar a pupila alheia, ainda não tinha aprendido a ler olhares. Era o protótipo do doutor Que-se-ferre, altivo, ríspido, arrogante, que convoca imperativamente os pacientes para a consulta às oito, chega às nove e vai embora às nove e cinco, depois de dedicar a cada um quarenta e cinco segundos do seu precioso tempo. Fisicamente, parecia-se com o Pimentinha, cabeça redonda num corpo curto e agitado. Já pouco falante com o comum dos doentes, tornava-se literalmente fugidio com os fantasmas do meu tipo, não tendo saliva para gastar dando-nos a mínima explicação. Acabei sabendo por que ele me obturara o olho por seis meses: a pálpebra não desempenhava mais seu papel de toldo móvel e protetor, e minha córnea corria o risco de ulcerar-se.
Ao longo das semanas, eu meditava se o hospital por acaso não usaria de propósito um tipo tão rebarbativo para catalisar a surda desconfiança que o corpo médico acaba por despertar nos pacientes de longa permanência. Um bode expiatório, digamos. Se ele for embora, como estão dizendo, de que pernóstico vou poder gozar? À sua eterna pergunta: “Está vendo em dobro?”, eu não teria mais o prazer solitário e inocente de ouvir-me a responder, em meu foro íntimo: “Sim, estou vendo dois babacas em vez de um”.
Tanto quanto de respirar, sinto necessidade de emocionar-me, amar e admirar. A carta de um amigo, um quadro de Balthus num cartão postal, uma página de Saint-Simon dão sentido às horas que passam. Mas, para continuar vigilante e não afundar na resignação indiferente, conservo certa dose de furor, de detestação, nem de mais nem de menos, assim como a panela de pressão tem sua válvula de segurança para não explodir... (trecho do capítulo “A voz em ‘off’”)

domingo, 29 de abril de 2012

Um homem doente faz a oração da manhã

Pelo sinal da Santa Cruz,
chegue até Vós meu ventre dilatado
e Vos comova, Senhor, meu mal sem cura.
Inauguro o dia, eu que a meu crédito explico
que passei em claro a treva da noite.
Escutei - e é quando às vezes descanso -
vozes de há mais de trinta anos.
Vi no meio da noite nesgas claríssimas de sol.
Minha mãe falou,
enxotei gatos lambendo
o prato da minha infância.
Livrai-me de lançar contra Vós
a tristeza do meu corpo
e seu apodrecimento cuidadoso.
Mas desabafo dizendo:
que irado amor Vós tendes.
Tem piedade de mim,
tem piedade de mim
pelo sinal da Vossa Cruz,
que faço na testa, na boca, no coração.
Da ponta dos pés à cabeça,
De palma à palma da mão.

Adélia Prado

terça-feira, 27 de março de 2012

O poema que não fiz

Estou debaixo do Cristo
E estou tão triste
Queria que isto fosse um dístico
Mas o poema insiste
Uma quadra? Tampouco
Cinco versos ainda é pouco
Já estou no sétimo e nada disse
No oitavo, algo em mim desiste
Estou debaixo do Cristo
E estou tão triste

20/05/2011, na Lagoa Rodrigo de Freitas

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

O buraco do espelho

o buraco do espelho está fechado
agora eu tenho que ficar aqui
com um olho aberto, outro acordado
no lado de lá onde eu caí

pro lado de cá não tem acesso
mesmo que me chamem pelo nome
mesmo que admitam meu regresso
toda vez que eu vou a porta some

a janela some na parede
a palavra de água se dissolve
na palavra sede, a boca cede
antes de falar, e não se ouve

já tentei dormir a noite inteira
quatro, cinco, seis da madrugada
vou ficar ali nessa cadeira
uma orelha alerta, outra ligada

o buraco do espelho está fechado
agora eu tenho que ficar agora
fui pelo abandono abandonado
aqui dentro do lado de fora

Arnaldo Antunes

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

"profissão: filósofo"?

divulgando um e-mail que recebi sobre um tema que entrou em discussão estes dias:

Prezados colegas: Tramita no Congresso Nacional, em regime conclusivo, o projeto de lei nº 2533/11, elaborado pelo depudado Giovani Cherini (PDT/RS)* . Seu objetivo é regulamentar a profissão de filósofo no Brasil. Conforme a proposta do deputado Cherini, o desenvolvimento de projetos socioeconômicos regionais, setoriais ou globais deverão contar com a participação de filósofos devidamente registrados no Ministério do Trabalho. Estarão qualificados para o exercício da profissão todos aqueles que possuírem título de bacharel em filosofia, os diplomados “em cursos similares” no exterior, após terem seus diplomas revalidados, além de mestres e doutores não diplomados que exerçam a atividade há mais de cinco anos. O mencionado projeto de lei também assegura que a profissão de “filósofo” poderá ser exercida por membros titulares da Academia Brasileira de Filosofia e “aos por ela diplomados”. Para conferir a íntegra do projeto de lei, acesse:
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=523870
Como representante da comunidade de pós-graduação dos cursos de filosofia no Brasil, a ANPOF vem manifestar seu repúdio a tal projeto. Cursos de filosofia formam professores de filosofia, que podem ou não ser filósofos. Assim também, cursos de literatura formam professores de literaratura, que podem ou não ser literatos. Finalmente, há filósofos e literatos sem titulação acadêmica. É tão absurdo exigir diplomação específica para alguém ser filósofo quanto seria exigir diplomação específica para alguém ser escritor. A filosofia não é e nem deve tornar-se competência exclusiva de um segmento qualquer, seja ele de natureza estamental, profissional ou ideológico. Acima de tudo, causa-nos estranheza a prerrogativa que o projeto pretende dar à Academia Brasileira de Filosofia, que qualifica como filósofos João Avelange e Carlos Alberto Torres, capitão da seleção de futebol de 1970. Trata-se de uma associação absolutamente inexpressiva no que concerne aos estudos, projetos de pesquisa e ensino da filosofia em nível universitário. A despeito disso, o referido projeto quer transformar essa entidade na representante da filosofia e da “língua filosófica” nacionais” (artigo 7). Por essas razões, endossamos o abaixo‑assinado que circula na Internet contra o mencionado projeto, que pode ser acessado a partir do link que inserimos abaixo.
http://www.change.org/petitions/abaixo-assinado-contra-a-regulamentao-de-filsofo-como-profisso-contra-a-regulamentao-de-filsofo-como-profisso
Cordialmente,
Vinicius de Figueiredo (Presidente da Diretoria da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia – ANPOF)