domingo, 25 de março de 2007

A próxima vítima


Eram três gatos, filhotes, um morreu mal fora transportado aqui pra casa. Hoje, os outros dois estavam fracos, um mais preto que branco, como um negativo do outro, mais branco que preto, enquanto o que morreu era em sua maioria cinza. Uma hora a gente viu os dois deitados, o mais branco miava, o mais preto estava de boca aberta: morto - disse minha mãe - mas ele respirava. Agonia de ver a barriguinha enchendo e descendo, subindo e murchando, tão ofegante que a gente fica ofegante também só de olhar. Agora há pouco vim vê-los de novo - na verdade são elas, porque não têm pinto - e notei que o pretinho, ou melhor, a pretinha, estava ainda daquele jeito, boquiaberta: morreu - pensei, mas lembrei do engodo de antes, fitei o ventre minúsculo do felino, já estava anoitecendo, não vi direito, mas parecia se mover: está respirando - pensei, - ou não - pensei melhor, - é minha própria respiração que me ilude. Ainda não fui checar, nem a luz acendi, preferi ficar em dúvida, mas de qualquer forma acabei me certificando, pois a branquinha se punha no papel de órfã de irmã, debruçada em cima e chorando, ou miando, sentindo, e depois saindo lentamente de cima. Não estivesse fraca, eu reputaria essa lerdeza ao abalo da perda. Ademais, ainda li na expressão da gatinha viva certo temor, como se previsse com isso sua própria morte, anunciada pelas que a precederam. Por enquanto, ela é a sobrevivente. Agora eu entendo quando minha mãe chegou com o trio e eu perguntei por que três e ela respondeu:
- Vai que morre um ou outro!

Otávio, depois duma tarde lendo Domingos Pellegrini

domingo, 11 de março de 2007

memórias de um principiante

Em 2001 eu ganhei meu 1º livro (Alguma poesia de Drummond), em 2002 comecei a escrever, daí conheci Paulo Leminski, em 2003 fui pro seminário e li muitas outras coisas. Desta época datam alguns dos meus primeiros poemas:

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Eu so tenho medo que ao se amar uns aos outros, os outros nao amem aos uns
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Quero ser um vencedor
Pra poder usar da modestia
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Falar de mim e falar do assunto
Que menos sei, que mais pergunto
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Fiquei sabendo - ela ja tem namorado
A esperan;a entanto me diria - ela ainda tem namorado
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Sem ti mento
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Conjugar coisas na segunda pessoa
E igual conjugar pessoas na segunda coisa
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Tanta gente a vir na via
Eu, a ver navios
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Pela rua
Dirce ia
sorridente
Dir-se-ia
que sorria mais que o dente
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Maos em contramao
Vao as cordas acordar
Se eu tocar violao
O violao vai ter que me tocar
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Voce nao fala com estranhos
Estranhos e que falam com voce
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Quero tudo, mas nada
Quero tudo, mais nada
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As exigencias exigidas pelos exigentes e exagero
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sexta-feira, 9 de março de 2007

Efeito-estufa (ou O sorvete)


Pediu um sorvete:
- Quanto é?
- Um real, o big-italian.
- Dá um. - tomou o sorvete nas mãos cuidadosas - E colherinha?
- Acabou.
Os vinte-oito graus no abafado terminal de ônibus estavam de derreter. Começou a lamber em volta da casca o creme que escorria. Sentia-se ridículo fazendo isto, quase obsceno, mas prosseguiu, e era preciso que girasse o sorvete com rapidez incomum. A parte inferior afinou, era, pois, preciso comer a parte de cima ou tudo ruiria. Não havia tempo, então dava abocanhadas histéricas que lhe faziam doer os dentes. Tinha a impressão de que todo o terminal o observava, enquanto curvava-se com golpes caninos contra aquela guloseima. Já não tinha coragem de olhar para os lados, só queria acabar com aquilo. Não pôde, o creme lhe escorreu nas mãos, sentiu grande constrangimento, lembrou de como as mulheres sempre o desprezavam e de como seu chefe o humilhava, queria era sair dali, sumir. O guardanapo grudava-se à casca, em vão tentava desgrudá-lo e lançá-lo em pedaços ao chão. Com o movimento abrupto, lambuzou uma adolescente que passava com a mãe. Ensaiou uma desculpa educada, mas o sorvete lhe escorreu nos cantos da boca e a menina afastou-se assustada, conduzida pela mãe.
O ônibus chegou, ele engoliu o resto morno na boca e foi sentar no fundo.
- Calor, né? - disse alguém.
- Pois é... - concordou ele.

(Otávio)

sábado, 3 de março de 2007

Baba de estudante


A saliva dançava nos cantos de sua boca. Era o dia de apresentar o seminário, quase não estava ansioso desta vez, já apresentara muitos seminários e adquirira desenvoltura com a coisa. Quis, para parecer mais organizado desta vez, levar o texto escrito. Era só ler e pronto. Preocupava-lhe só aquele detalhe, sempre tem que ter alguma coisa, se não houvesse nada iria preocupar-lhe o fato de não estar preocupado. Era como um mar em ressaca na sua boca, ainda masi por conta de uns tratamentos odontológicos que fizera nas vésperas, além de uma bala freegels que chupara havia instantes.
Concentrou-se no texto e falou como se fosse um professor, sugando a saliva nas vírgulas, enriquecendo assim o seu seminário com aquele barulho que isolado poderia indicar um arrepio. Dos alunos, sobretudo os distraídos, vinha uma ameaça de riso, pois atentavam aos seus gestos e trejeitos e não ao conteúdo que era transmitido.
Os músculos ligados á fala já cansavam naquele penoso trabalho. Ele, empolgado com o que tinha escrito, superava isso, não era nada, ninguém devia estar notando além dele.
- A substância de Aristóteles... - ia dizendo, mas uma gota viscosa caiu displicente no papel, pensou logo em fazer uma piada mas ficou sem reação. Como? Como aquela baba escorreu sem passar pelo consentimento de seu cérebro?