domingo, 7 de agosto de 2016

Impeachment é golpe?


Não, impeachment não é golpe, está previsto na Constituição. Não é preciso ser ministro do supremo para saber disso. Acontece que não se recebe a resposta certa fazendo a pergunta errada. A pergunta que se deve fazer, em nome de um mínimo de honestidade intelectual, é se impeachment sem crime de responsabilidade é golpe. Neste ponto, a resposta é sim. Tanto a direita quanto a esquerda devem concordar com estes dois pressupostos. Caso contrário, não pode haver uma discussão minimamente racional. Sendo assim, toda controvérsia deve se concentrar sobre se, no caso atual do Brasil, há um crime de responsabilidade ou não.
O principal argumento à direita é que houve maquiagem das contas públicas, violação da lei orçamentária. Por aí já se percebe que não se está tratando de algo como enriquecimento ilícito, e este é justamente o principal argumento à esquerda. Pois bem, é preciso deixar claro que ninguém pode ser acusado sem saber do que está sendo acusado, e por isso o processo de impeachment de Dilma Roussef se concentrou em torno das chamadas pedaladas fiscais, demora no repasse de valores a bancos públicos, e nos decretos de crédito suplementar. Este era o pressuposto jurídico sem o qual não se poderia passar para o julgamento político. Particularmente, estou convencido de que não há evidência alguma de crime de responsabilidade. Como diria Belchior: "tenho ouvido muitos discos (leia-se vídeos), conversado com pessoas", e não é difícil para mim chegar à conclusão de ausência de crime. Isto porque há vários níveis pelos quais a discussão passa e, mesmo que se conceda razão aos que são a favor do impeachment em um primeiro ou segundo nível, há um nível em que isto é, na minha opinião, impossível.
Poderíamos arbitrariamente estipular vários níveis para esta discussão, de modo a dar conta de desfazer os mais diversos mitos criados por uma dupla infalível: parcialidade de quem informa, fanatismo de quem é informado. No entanto, por didatismo, podemos fazer um recorte em três níveis:
1º. Não há enriquecimento ilícito da presidente Dilma. Isto é curioso porque muito se fala da Lava-a-jato. A julgar por dois detalhes importantíssimos que lamentavelmente demonstram parcialidade do judiciário (a condução coercitiva de Lula e o vazamento de áudios ilegais para insuflar ódio irracional na população), era de se esperar que se chegasse a Dilma, via PT, a fim de fazer o recorte jurídico que serviria de pressuposto ao julgamento político do impeachment. Como isto não foi possível, fez-se um recorte em torno das pedaladas e dos decretos.
2º. Não houve pedaladas nem decretos sem autorização do congresso. Não houve pedaladas porque não houve operação de crédito com os bancos públicos, e os créditos suplementares, que estavam condicionados ao cumprimento de uma meta orçamentária por parte do governo, foram decretados de acordo com esta meta. Não houve descumprimento da meta e, por isso, os decretos não foram ilegais. O curioso deste ponto é que o governo esteve à beira de cometer este erro de que está sendo acusado agora. Ao perceber que não cumpriria a tal meta, enviou proposta de mudança da mesma ao congresso que... aprovou a meta. O mesmo congresso que depois, com um exemplo emblemático do que significa a palavra 'cinismo', fez um julgamento político (leia-se sem fundamento jurídico) de que não houve cumprimento da meta.
3º. Neste nível, entramos em um raciocínio contrafactual. É aquele ponto em que a discussão já está praticamente terminada. Você defende A e seu interlocutor defende B e, embora haja mais evidências em favor de A, você concede a hipótese: e se B for o caso...? Pois bem, muito embora a cultura brasileira faça um movimento pendular entre o messianismo e a iconoclastia, privilegiando muitas vezes um único indivíduo em detrimento do grupo e do contexto em que está inserido, é certo que a presidente da República não governa sozinha: para isso há órgãos técnicos, os quais levam a cabo muitas decisões, corretas ou não. O fato é que decisões que partem destes órgãos técnicos eximem a presidente de dolo. O dolo é diferente da culpa, esta advém de negligência, imperícia ou imprudência. Muito se tem acusado a presidente afastada destas três coisas, talvez não sem razão, porém isto não caracteriza o dolo, que é a intenção de cometer um malfeito.
É certo que estes pontos não esgotam a discussão. Em todos os níveis, há espaço para o contraditório. Há quem traga à baila a época em que Dilma foi presidente do Conselho de Administração da Petrobrás, há quem diga que a meta orçamentária não é anual e sim bimestral ou que o rol de crimes de responsabilidade não é exaustivo e sim exemplificativo, e há quem identifique o dolo na intenção de vencer as eleições. No entanto, raramente as discussões chegam até este ponto; há algumas que não chegam nem ao primeiro nível, mas apoiam-se em coisas como inflação e desemprego (!). Podemos chamar estes casos de nível zero da discussão, quando nosso interlocutor dá de ombros e afirma: pois que seja golpe! Neste ponto, voltamos a 1964, e percebemos que a cultura democrática brasileira ainda tem muito o que aprender.
Desnecessário dizer que a mídia apoiou as manifestações pró-impeachment, e não deixou a menor dúvida de sua parcialidade quando abafou a delação de Sérgio Machado, em que Romero Jucá fala explicitamente da intenção de colocar "o Michel" no poder. Lembro que aguardei ansioso para assistir ao Jornal da Globo e ver o que William Waack afirmaria em seu editorial e... nenhuma menção ao Michel. (Aliás, parece que a principal notícia aquele dia na GloboNews era a Venezuela). Para concluir, e lembrando a frase de Brecht de que o pior analfabeto é o analfabeto político, não duvido de que, numa enquete destinada a perguntar se o caso de Dilma se assemelha mais ao de Collor ou ao de João Goulart, boa parte das respostas seriam: "quem é João Goulart?".