quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Citakant

"Fontenelle diz: Diante de um nobre eu me curvo, mas meu espírito não se curva. Eu posso acrescentar: diante de um homem humilde e cidadão-comum, no qual percebo uma integridade de caráter numa medida tal como não sou consciente em relação a mim mesmo, meu espírito se curva, quer eu queira, quer não, e ainda mantendo a cabeça erguida a ponto de não lhe deixar despercebida minha preeminência". (Kant, Crítica da razão prática)
***
"Não descobriu às vezes todo homem, mesmo o apenas medianamente honesto, que ele deixou de praticar uma mentira, afora isso inofensiva, pela qual ele ou podia livrar-se de um negócio incômodo ou até ser útil a um amigo querido e benemérito, simplesmente para não precisar desprezar-se secretamente ante seus próprios olhos? Um homem honrado, na máxima desgraça da vida, que ele teria podido evitar desde que não se importasse com o dever, não mantém ainda a consciência de que ele, não obstante, preservou e honrou em sua pessoa a dignidade da humanidade, que ele não tem de envergonhar-se ante si mesmo nem tem razão para temer o escrutínio interno do auto-exame? Este consolo não é felicidade e tampouco a mínima parte dela. Pois ninguém desejará a ocasião para isso, e talvez nem mesmo uma vida em tais circunstâncias. Mas ele vive e não pode suportar ser a seus próprios olhos indigno da vida. Portanto esta tranqüilização interna é meramente negativa em relação a tudo o que possa tornar a vida agradável; (...) Ela é o efeito de um respeito por algo totalmente diverso da vida, em comparação e contraposição com o qual a vida, muito antes, com todo o seu agrado, não tem absolutamente valor algum. Ele só vive ainda por dever e não porque encontra na vida o mínimo gosto". (Idem, ibid.)

domingo, 19 de outubro de 2008

Você diz

Pouco me importam, você diz
As suas manias, suas opiniões
Seu jeito torto de estar no mundo
Pouco me importa
Sua ética profissional
Seu ateísmo metodológico
Sua consciência de classe
Por que haveria de me importar?
Sua opção preferencial pelos pobres
Seus ataques apaixonados
Seu humanismo barato
Seu voto em branco
Sua voz alterada
Pouco me importa a sua solidão
O seu som, a sua fúria
E esta pressa de viver
Pouco se me dá
O seu disco do Belchior
O seu livro preferido
Sua crise existencial
A sua falsa modéstia
Sua timidez, pouco me importa
A sua pena de si mesmo
Suas mágoas, remorsos
As suas próprias razões
Ou em quantas línguas
Você sabe dizer eu te amo
Porque, baby, I don't care.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Eu não gosto de Deus

A postagem de "Igreja" de Nando Reis no blog de Antonio Cicero acabou por gerar comentários sobre tolerância e intolerância. Alguém acusou a letra de intolerante. Depois, alguém comentou: "você não concorda comigo que a maior vítima da intolerância hoje em dia é o atéismo? O teísta vê o ateísta, quando não como um inimigo 'mais profundo', de um modo mais sutil e talvez perigoso, com incredulidade, sem dar crédito à própria convicção do ateu, como aquele comentário mais prosaico ilustra: 'ah, você diz que é ateu, mas, na hora do aperto, reza escondido...'" (Comentário prosaico, aliás, que encontramos em Montaigne, sobre o ateu: "uma boa estocada no peito e ei-lo de mãos postas a implorar o céu"). Em resposta, o próprio Antonio Cicero arrematou com uma pesquisa: "Sim, acho que o ateu é vítima de intolerância. Em 1999 o Instituto de Pesquisas Gallup, nos Estados Unidos, perguntou se as pessoas estariam dispostas a votar numa pessoa altamente qualificada que fosse mulher (95% disseram que sim); católica (94% de sim); judia (92% de sim); preta (92% de sim); homossexual (79% de sim); atéia (49% de sim)". E isso para ficarmos só com as estatísticas... Essa discussão me lembra ainda um excerto de Clarice Lispector que diz algo como "Alguém me disse: eu te trocaria por Deus... Eu entendo esta pessoa". Em todo caso, um pouco de ódio faz sempre bem pra alma. Às vezes acho que a melhor parte de ser ateu é ser odiado, como nos assevera Mersault no fim d'O Estrangeiro: "Para que tudo se consumasse, para que me sentisse menos só, faltava-me desejar que houvesse muitos espectadores no dia da minha execução e que me recebessem com gritos de ódio". E àqueles que insistirem em atestar: "ó não, mas eu não te odeio", respondo com as palavras de Nietzsche: "Como quereríeis ser justo para comigo? - assim é que lhes devia falar. - Eu elegi para meu destino a vossa injustiça".

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Entrevista com Rodrigo Madeira

"Quando escrevi 'bilhete'*, do livro 'sol sem pálpebras', por sinal o último poema do livro, algumas pessoas (basicamente as pouquíssimas que leram o livro) acharam que eu estava meio que anunciando um suicídio. Pode ser, é uma possibilidade. Há sempre em nós alguém que anuncia um suicídio".
trecho de entrevista com Rodrigo Madeira,
no blog chaparasborboletas
*bilhete

escrevi um verso
um poema
um livro
.
e daí?
.
se a esquadria do que escrevo
não me segura
o esqueleto de água
.
se vou morrer
se vais morrer
se vai morrer a língua
em que escrevo
se vai morrer o país
que fala minha língua
e todas as linguas de todos
os países que falam
.
por que esta teimosia
de escrever?
.
por que não deixar
o passado fedendo
o futuro mentindo
impunemente
o presente apenas
o que já vai deixando de ser
.
escrevo como quem
vive e não vai viver
.
não como quem
à visitação pública
em terras de amanhã
se enraíza e flora
.
eu escrevo não para ficar,
meu amor,
.
escrevo para ir embora
Rodrigo Madeira

sábado, 11 de outubro de 2008

Dias úteis

Há quanto tempo tudo deixou de fazer sentido? Há quanto tempo é tão difícil levantar de manhã? Você se senta sobre a cama e olha os pés, o sol entra pela janela, você está só no seu quarto, com todos os seus anos de idade, não importa o que você fez ao longo desses anos: eles passaram. Não importam os prêmios que você ganhou: você está só, e o sol bate em seu corpo. Quem lhe deu os parabéns entrou no carro sorrindo e se esqueceu de você. Você sempre esteve só, e você sabe disso. Outros virão, apertarão a sua mão, mas na manhã seguinte o sol baterá de novo em sua cara. Há quanto tempo tudo perdeu o sentido? E no entanto você anda pelas ruas, e no entanto você entra nas bibliotecas, e sai das bibliotecas, e toma sempre aquele ônibus. E no entanto você entra sozinho nos cinemas, e sai sozinho: e as ruas já estão escuras. E você sabe que na manhã seguinte a luz do sol arderá de novo em seu rosto. E você tapará o rosto com as mãos, porque não haverá nada mais a fazer a não ser tapar o rosto com as mãos.

domingo, 5 de outubro de 2008

Réquiem para Chorão



- Se não eu, quem vai fazer você feliz? Se não eu, quem vai fazer você feliz?

- Ué, meu namorado, oras!

sábado, 4 de outubro de 2008

Revelação divina do Inferno

O demônio veio até mim e me disse:
- Olha esses homens, como têm medo de mim
E no entanto eu não tenho feito
Senão andar por aí
E mirar o olhar dos mendigos
Antes de morrerem de frio
Eu que, ao lado de Deus,
Vi os loucos serem recolhidos à bastilha
E os homossexuais serem torturados
Eu que quando vi Maiakovski e Sylvia Plath se matarem
Apertei a mão de Deus em silêncio
Eu que trago este ar sombrio
Que põe os psiquiatras em pânico
No entanto não sou mau
A não ser na frieza que trago no olhar
Vivendo entre os homens
Nunca os induzi ao mau
Mais que o Destino
Não tenho feito senão
Acompanhar a rotina dos bêbados
E sentir com eles o vômito emergir à garganta
Ou, em outras praias,
Sentir na língua dos namorados
O LSD que derrete no beijo
Eu que sou o filho mais novo de toda beata
E o recepcionista de igrejas e hospícios
Ah! Eu nem sempre fui tão frio

No início de tudo, eu vi Deus
Pôr elétrons pra girar em torno dos núcleos
E até lhe ajudei
A pôr os planetas em torno de estrelas
E assim nós dois, juntos,
Fizemos os átomos e os sistemas solares
E eu me lembro bem quando Deus me disse:
- Deste núcleo se fará ainda uma bomba!
E havia brilho nos seus olhos.
E vi, assustado, Deus em fúria me dizer:
- Vê estes planetas? Vão se chocar entre si.
E Deus riu um riso mau.
E me olhou com indiferença antes de dizer:
- Colocarei animais neste planeta aqui
E farei alguns pensar que são grandes e inteligentes
E encherei seus peitos de vaidade
E sairão lutando um contra o outro
Alguns perderão o juizo
E sairão cantando nas ruas

E em dizendo isso
Deus me olhou como quem volta a si e disse:
- Não se assuste, meu velho!
Colocaremos neles, eu e você,
Alguma esperança e medo
Pra que arrastem suas existências
Movidos por qualquer lógica
E poderemos, nós os dois,
Ver o desespero surgir dentro deles
E a lágrima verter em seus olhos
E talvez nos causem pena
E ainda assistiremos
- nós dois, meu chapa! -
Seus corpos crescendo sobre a terra
Definhando de desejo por outros corpos
E veremos nos seus olhos débeis
O brilho da angústia!
E os anjos assistirão conosco.