segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Estamira

Quem andou com Deus dia e noite,
noite e dia na boca ainda mais com os
deboches, largou de morrer? Quem fez
o que ele mandou, o que o da quadrilha
dele manda, largou de morrer? Largou
de passar fome? Largou de miséria? Ah,
não dá! Não adianta! Ninguém, nada vai
mudar meu ser.

A doutora passou remédio pra raiva. Eu fiquei
muito decepcionada, muito triste, muito
profundamente com raiva dela falar uma coisa
daquela. E aí ela ainda disse sabe o quê?
Que Deus que livrasse ela, que isso é magia,
telepatia e o caralho. Porra, porra, porra.
Pra quê, pô? Ela me ofendeu demais da quantia.

Engraçado, eu não sei se é, por incrível
que pareça, a palavra certa, o que eu
mais sinto falta na minha vida é a minha
mãe. O que eu mais lembro na minha
vida, minuto por minuto, é a minha mãe.
Um dia a minha mãe me perguntou assim,
"neném, você já viu eles?" Eu falei, "que
eles?" Ela falou, "eles é uma porção
deles". Era os astros que atentavam
ela. Os astros ofensível, negativo, que
atentava ela. Eu sou do astro positivo,
eu não sou do astro negativo. Eu sou do
astro positivo útil.

"Atesto que Estamira Gomes de Souza,
portadora de quadro psicótico de evolução
crônica, alucinações auditivas, ideias
de influências, discurso místico, deverá
permanecer em tratamento psiquiátrico
continuando, continuado."
É, bem, deficiência mental eu acho que tem
é quem é imprestável, né? Ora, quem tem
problema mental, bem, perturbação também
é, né? Perturbação, depois eu tive pensando,
perturbação também é, mas não é deficiência,
né? Perturbação é perturbação, qualquer um
pode ficar perturbado.

Eu, Estamira, eu não concordo com a vida;
eu não vou mudar o meu ser, eu fui visada
assim, eu nasci assim, e eu não admito as
ocorrências que existe, que tem existido com
os seres sanguíneos, carnívoros, terrestre.

Trechos de "Estamira: fragmentos de um mundo em abismo", livro-fotograma baseado no documentário homônimo de Marcos Prado.

domingo, 16 de novembro de 2014

Minha Grande Ternura

Minha grande ternura
Pelos passarinhos mortos;
Pelas pequeninas aranhas.

Minha grande ternura
Pelas mulheres que foram meninas bonitas
E ficaram mulheres feias;
Pelas mulheres que foram desejáveis
E deixaram de o ser.
Pelas mulheres que me amaram
E que eu não pude amar.

Minha grande ternura
Pelos poemas que
Não consegui realizar.

Minha grande ternura
Pelas amadas que
Envelheceram sem maldade.

Minha grande ternura
Pelas gotas de orvalho que
São o único enfeite de um túmulo.

Manuel Bandeira

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Estrambote Melancólico


Tenho saudade de mim mesmo,
saudade sob aparência de remorso,
de tanto que não fui, a sós, a esmo,
e de minha alta ausência em meu redor.
Tenho horror, tenho pena de mim mesmo
e tenho muitos outros sentimentos
violentos. Mas se esquivam no inventário,
e meu amor é triste como é vário,
e sendo vário é um só. Tenho carinho
por toda perda minha na corrente
que de mortos a vivos me carreia
e a mortos restitui o que era deles
mas em mim se guardava. A estrela-d'alva
penetra longamente seu espinho
(e cinco espinhos são) na minha mão.

Carlos Drummond de Andrade