sábado, 28 de junho de 2008

auto-ajuda americana: modo de ler

Sempre gostei de escritores cínicos e/ou irônicos, desde um Luis Fernando Veríssimo, em que fica bem claro o que é ironia e que não passa de ironia, até um Dalton Trevisan, em que o cinismo toma proporções tais que certas pessoas são capazes de tomá-lo literalmente. Rubem Fonseca seria um meio-termo entre eles. Mas neste assunto o melhor do mundo - do mundo - é sem dúvida o machadão, como quando em Esaú e Jacó o conselheiro Aires diz que, como não tem nenhuma religião, de certa forma aceita a todas da mesma maneira. Vale lembrar que Machado morreu se recusando a receber a visita de um padre que queria lhe dar a unção dos enfermos.
Mas toda esta turma está correndo sérios riscos, pois está se formando uma séria concorrência de uma galera aí do norte, destes livros que sempre começam com números: 7 leis para ser feliz, 10 caminhos para fazer sucesso, 7 sacramentos da felicidade, 5 mandamentos dos pais, 8 dicas para ser um bom cunhado, porque as mulheres têm voz fina e os homens falam grosso etc. Quando você vai olhar a orelha, está dizendo que o cara é filósofo! Quer dizer que o século 21 está cheio de novos Sócrates! Talvez eles até tenham passado por uma faculdade de filosofia na califórnia ou em boston, arranhando um Dewey ou um Adam Smith e fazendo do dever kantiano o emblema do puritanismo white anglosaxonic protestant, mas eu faria questão de falar bem baixinho numa destas orelhas que a filosofia é o único curso em que, quando você se forma, não é nada! Filósofo? Tudo bem, pode até ser, o assunto aqui é mesmo a ironia, não é?
Certa vez um amigo disse que, assim que se formasse, escreveria um livro chamado "Como ganhar dinheiro escrevendo livros de auto-ajuda", um livro, dizia ele, típico de filósofo frustrado. Mas eu acho que a concorrência, mais do que na filosofia, está mesmo é no humor. Estes dias peguei um livro, que meu pai me obrigou a ler, chamado "Os segredos da mente milionária" e posso dizer que me diverti muito, parte dos capítulos era destinada a uma espécie de apologia da riqueza, mediante a crítica do preconceito que a "mente pobre" tem dos ricos, eu realmente dei umas boas risadas, e muito sinceras, que fizeram diminuir o meu Veríssimo na estante. Percebi que há algo a ser aproveitado em toda esta sub-literatura, ou melhor, que ela é perfeita. Basta escrever um prefácio deixando claro que se trata de uma caricatura e, como num passe de mágica, todo o conteúdo passaria, sem mudar uma linha sequer, de auto-ajuda para paródia da mesma.
Sem essa de que auto-ajuda americana é sub-literatura, ela é, na verdade, algo tão sutil que traz em si a própria paródia, são livros auto-depreciativos por excelência, um neo-kafkianismo, as pessoas é que os lêem de forma errada, ipsis litteris, basta uma mudança de point of view e voilà! Temos o melhor humor que já se produziu em todos o tempos, envolvido na mais fina sutileza, longe de qualquer ironia grosseira, de quaisquer críticas cheias de remorso, pois a melhor forma de falar mal de alguma coisa é amando esta coisa, só assim este falar-mal é completamente imparcial. E, então, poderíamos dizer: quem diria! um escritor tão medíocre era, na verdade, uma revelação do humorismo!

quarta-feira, 25 de junho de 2008

4 ou 5 (ou meia-dúzia?) coisas inúteis q sei de cor

p/ Ana Carolina, querida amiga virtual
por quem alimento grande simpatia*


1. as preposições;
2. contar até 10 em japonês;
3. rezar o pai-nosso e a ave-maria em ucraniano;
4. cantar eduardo e mônica e faroeste caboclo (o que não é tão inútil, pois é bom em acampamentos);
5. o alfabeto grego;
6. e a bíblia (na verdade, esta última eu não sei de cor: é apenas inútil).

Apesar de inútil (ainda que não mais do que a vida), dá pra encontrar alguma utilidade nisso tudo. Por exemplo, afastar os pedantes: quando aquele primo chato chega se exibindo porque aprendeu a tocar jesus, a alegria dos homens ou a nona sinfonia no teclado que ganhou da avó no natal, você pega e declama o alfabeto de alfa a ômega (ainda que não saiba nenhuma palavra em grego, afora um êidos ou uma ousía e ainda assim transliterados). Aliás, mais do que pedantes, dá pra afastar a companhia, igualmente indesejada, de intelectuais: se o cara chegar se gabando, só porque obteve a livre-docência defendendo tese sobre as lógicas bi-modais do tempo ou o Tractatus de Wittgenstein, você logo revida - e daí? Eu sei rezar o pai-nosso e a ave-maria em ucraniano! Mas a principal utilidade, última na ordem mas não na importância, é elevar a auto-estima em meio a momentos de extrema depressão. Quando dá aquela vontade de se matar, sempre penso: não posso morrer, o que seria do mundo sem alguém que sabe as preposições de a a trás!


*a título de meme


ps: a gente escreve livro e não consegue publicar... nós é inútil!

sexta-feira, 13 de junho de 2008

Citação*

*do poema solidão doméstica, de josé luis peixoto:

(...) Se eu escrever um poema
esse não é motivo para te importunar
eu escrevo muitos poemas
e tu trabalhas de manhã cedo
toda gente sabe que a noite é longa
não tenho o direito de telefonar
para te dizer isso
apesar desta evidência

me matar agora
e morro
mas não morro
se morresse perguntavas:
por que não telefonaste?
se telefonasse, perguntavas:
sabes que horas são? (...)

terça-feira, 10 de junho de 2008

Repercussões da obrigatoriedade

Desta vez foi no biarticulado, meu dia não tinha sido dos melhores, um bando de estranhos se esfregam em mim enquanto eu me crucifico segurando em dois ferros acima de minha cabeça, uma menininha de uniforme, nos seus 15-16 aninhos, indignada, explica à amiguinha que lhe dirige um rosto redondo e irônico cheio de ácne:
- Filosofia é filosofia: filosofia é uma bosta. Sociologia até que é legal...
Neste momento levantei minha cabeça sangrenta aos céus e clamei: Eli, Eli, lammá sabactáni? [Deus meu, Deus meu, por que me abanbonaste?] Isto me remeteu a uma época em que pegava sempre o mesmo horário, e o ônibus parava num ponto, e entrava toda a criançada com a mochilinha da faculdade: Jornalismo - UniEsquina; Direito - UniEscambal... e eu vim uma dessas viagens inteiras ouvindo duas coleguinhas a dizer que o professor de filosofia era chato, feio e bobo. Sem falar que só comia marmelada.
Mas, como diria aquela velha reza popular, a voz do povo é a voz de Deus. Sim, e como diria Luiz Vilela, o homem é uma cagada de Deus.

domingo, 8 de junho de 2008

O existencialismo é um humanismo: zera a reza!



Sartre nosso que estais na estante
Citado seja o vosso nome

Venham a nós os vossos livros
Seja feita a liberdade
Assim no Ser como no Nada

O absurdo nosso de cada dia
Nos dasein hoje

Perdoai-nos as nossas paródias
Assim como nós perdoamos
A quem nos tem par-odiado

E não nos deixeis cair em angústia
Mas livrai-nos da náusea. Amém.

terça-feira, 3 de junho de 2008

Boas novas

Acabo de abrir um e-mail (aliás, histórico) do núcleo de educação:

02/06/2008 09:13:12
(...)
O presidente da República, em exercício, José Alencar, sanciona nesta segunda-feira, 2, às 16h, no Palácio do Planalto, a lei que torna obrigatório o ensino das disciplinas de sociologia e filosofia nas escolas de ensino médio, públicas e privadas. A lei foi aprovada primeiro na Câmara dos Deputados, onde o projeto começou a tramitar em 2003, e no dia 8 de maio deste ano, no Senado.
Para tornar obrigatório o ensino de sociologia e filosofia no currículo do ensino médio, o Congresso Nacional alterou o artigo 36 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. A obrigatoriedade, segundo a lei, entra em vigor a partir da sua publicação no Diário Oficial da União. (...)

domingo, 1 de junho de 2008

Oração para Marilyn Monroe*

*Místico e revolucionário ("opta pelo Socialismo e pelo Evangelho. 'Absurdo' talvez para uns... Quem crê de verdade torna-se absurdo facilmente" - Pedro Casaldáliga), considerado pela crítica - segundo o tradutor Paulo de Carvalho Neto - "el más formidable renovador de la poesía latinoamericana después de Neruda", o nicaragüense Ernesto Cardenal é um desses escritores que só conhecemos se nos caem na mão por acaso. Ou não, mas foi assim que achei esta delicada pérola de la poesía latinoamericana. Do fundo do baú:
___
(foto: Norma Jeane Baker)

Senhor
recebe a esta garota conhecida em toda a Terra pelo nome de Marilyn Monroe
embora este não fosse o seu verdadeiro nome
(mas Tu conheces o seu verdadeiro nome, o da órfã violada ao nove anos
e da empregadinha de loja que aos dezesseis tinha querido se matar)
e que agora vem à tua presença sem nenhuma maquilagem
sem a sua Agente de Imprensa
sem fotógrafos e sem assinar autógrafos
tão sozinha como um astronauta diante da noite espacial.

Ela sonhou quando menina que estava nua numa igreja
(segundo a versão do Time)
diante duma multidão prostrada com a cabeça ao chão
e tinha de caminhar devagarinho para não pisar nas cabeças.
Tu conheces os nossos sonhos melhor do que um psiquiatra.
Igreja, casa, cova são a segurança do seio materno
e muito mais do que isso ainda...
As cabeças são os admiradores, é claro
(a massa de cabeças na escuridão por debaixo dos focos de luz)

Mas o templo não são os estúdios da 20th Century-Fox.
O templo - de mármore e ouro - é o templo de seu corpo
em que está o Filho do Homem com um chicote na mão
expulsando os mercadores da 20th Century-Fox
que fizeram de Tua casa de oração um covil de ladrões.

Senhor
neste mundo contaminado de pecados e radioatividade
Tu não culparás somente a uma empregadinha de loja
Que como toda empregadinha de loja sonhou ser estrela de cinema.
E seu sonho foi realidade (mas como a realidade do tecnicolor).
Ela não fez senão representar segundo o script que lhe demos
- O de nossas próprias vidas - E era um script absurdo.
Perdoa-a Senhor e perdoa-nos pela nossa 20th Century
por esta Colossal Superprodução em que todos trabalhamos.
Ela tinha fome de amor e lhe oferecemos tranqüilizantes,
para a tristeza de não ser santos
foi-lhe recomendada a Psicanálise.
Lembra-te Senhor de seu crescente pavor à câmara
e seu ódio à maquilagem - insistindo em maquilar-se em cada cena -
e como foi se fazendo maior o horror
e maior o incumprimento dos horários.

Como toda empregadinha de loja
sonhou ser estrela de cinema.
E sua vida foi irreal como um sonho que um psiquiatra interpreta e arquiva.

Os seus romances foram um beijo com os olhos fechados
que quando no abrir dos olhos descobre-se que foi dado sob os refletores
e apagam os refletores!
e desmontam as paredes da alcova (era um cenário cinematográfico)
enquanto que o diretor vai embora com seu caderno porque a cena já foi filmada.
O mesmo é com uma viagem em iate, um beijo em Cingapura, um baile no Rio
ou uma recepção no palacete do Duque e da Duquesa de Windsor
vistos na TV de um apartamento pobre.

O filme terminou sem o beijo final.
Foi achada morta em sua cama com a mão no telefone.
E os detetives ficaram sem saber a quem ela ia chamar.
Foi
como alguém que marcou o número da única voz amiga
e ouve somente a voz de uma fita que diz: WRONG NUMBER
Ou como alguém que ferido pelos gângsteres
estende a mão sobre um telefone desligado.

Senhor
quem quer que tenha sido aquele que ela ia chamar
e não chamou (e talvez não fosse ninguém
ou fosse Alguém cujo número não está no Catálogo de Los Angeles)
atende Tu ao telefone!
Ernesto Cardenal