domingo, 9 de março de 2008

O deserto de Babel

Dizem que a palavra não existe, mas antes que a própria existência é uma palavra, como se fosse possível cavar buracos em abismos, como se fosse preciso uma lanterna pra ver o sol. Não, não vale a pena crer nesta triste verdade, nenhuma verdade vale à pena. Cada vez mais sou tragado por esse absurdo: já não tenho mãos que escrevem, nem estas têm carne, nem a carne é viva - é tudo palavra. Percebo isso como se meu coração secasse, como se a notícia fatal fosse dada. Olho em volta e as palavras me furam os olhos, me queixo em poemas como se vomitasse a bílis, pedaços de mim no chão. Até mesmo Deus veio até mim dizendo Aqui estou, e tudo que fiz foi anotar. E as palavras de Deus engoliam Deus, e quanto mais Ele falava, mais a boca ia envolvendo nariz e queixo, até que Deus se fez do avesso, tornou-se todo lábios de Maiakovski e desapareceu como o Gato de Alice. Sempre chega um dia, pode ser um domingo, em que se fica tão sozinho que não se tem mais que o próprio nome, um nome que nos trai com consoantes em vez de ossos. Já não adianta nos apresentar a ninguém: João, Maria. Maria, João. Não. Nem dizer eis-me aqui, nem. A palavra chega antes da gente, avisando o outro do nosso não-ser, estapeia-lhe o rosto para pensar que somos maus, aperta-lhe a carne para que pense que temos taras, esquenta-lhe os lábios a apregoar que o sangue nos sobe e nos arranca a roupa como se o vento fosse assim tão forte. E a palavra desce do céu, e sentimos vergonha porque estamos nus. Sim, porque no princípio era o verbo. Desde então o homem, mesmo que esse homem seja eu, anda pelo mundo atrás da não-palavra. Em busca do silêncio, silêncio que tem fim com o movimento da Terra, silêncio que se extingue, não ao brotar da flor, mas à simples idéia de que uma flor brote. Mas nunca se chega ao silêncio que subjaz: o silêncio, não dos astros que giram no espaço, mas antes do astro que nem foi pensado, até porque não existe. Ou vice-versa: tanto faz. Como se. Como se. Como se morrer fosse não ter nascido e essas coisas que diz toda mulher, quando está triste. Como. Como. A personagem de Woody Allen que se tornava superconsciente do próprio corpo. Macabéa sem saber o que tem dentro do seu nome, eu também não sei o que há dentro do meu nome, como aquela vez em que voltava pra casa por uma rua tão escura, mas tão escura que tive medo de que meu endereço não estivesse lá ou, se estivesse, que eu abrisse a porta e nada encontrasse de meu, e no quarto da minha mãe não fosse ela que dormisse, mas uma barata, como se outra família ali se alojasse, e falasse outra língua. Sartre tinha razão: um trem pode descarrilar. Mas eu era pequeno ainda, tinha medo do escuro. Hoje, antes que apaguem a luz, fecho os olhos, sabe como é: mudamos as teses para não mudarmos os fatos. E ainda assinamos embaixo. Tenho pena daquele velho que, graças ao novo ministro, aprendeu a escrever o nome, e sorria pra câmera porque conheceu a morte antes da morte, como quem conhece o sexo. Todo soberbo o velhote. Há quem se desculpe por não ter o que dizer, por faltar-lhe as palavras. Na verdade estamos sempre nos desculpando por não ter o que dizer. Pois quem teria, de fato, algo a dizer? Mas dizem também que o mundo não é assim tão mau, que é apenas redondo, entende? Mas ainda tenho dúvidas. Mas. Mas. Guardo cá meu ceticismo, acredito que as palavras são como o arco-íris: nos enganam dizendo a verdade. Que a palavra quebra as pernas ao inefável e corta-lhe a cabeça para que caiba em seu caixão. Que. Que. Que a palavra tira o leite e o mel tanto da pedra como da vaca morta. Porque Deus está em toda parte. Oremos, diz o padre, e todos se calam em vez de orar, porque assim se vaia Roma, e quem beber deste cale-se estará bebendo a própria consumação. Calamos. Porque. Porque. Porque a cada palavra se morre um pouco, deixa-se de ser o que se é e passa-se a ser o que se diz. E tudo pode ser usado contra nós. E será usado contra nós. E está sendo, mas não agora: agora faremos um minuto de silêncio.

5 comentários:

Giuliano Gimenez disse...

HEIDEGGER NÃO DISSE NADA DE NOVO

"O Ser é, o não-Ser não é, e: o que é não pode não ser" - Parmênides.

esse seu lugar-komum mi pareci qui tá opirando im automátiko

Otávio disse...

mas e o que não é?
pode VIR A SER?

Anônimo disse...

Em primeiro lugar quero dizer que você escreve muito bem (mas isso creio que você já deve saber e já tenha recebido inúmeros elogios em relação à sua escrita). Confesso que ao te ler lembrei de Fernando Pessoa e de Nietzsche (também confesso que não gosto da filosofia de Nietzsche - mas isso não vem ao caso agora - pois mesmo não gostando do pensamento de Nietzsche, confesso que ele escrevia muito bem), Fernando Pessoa era outro, que além de poeta era filósofo e que na minha opinião abordava os temas filosóficos de uma meneira brilhante. Até Schopenhauer escrevia muito bem também; e o seu estilo, seu jeito de trabalhar com as palavras é semelhante aos pensadores aqui citados por mim =) Gostei da sua reflexão sobre a palavra, sobre a linguagem. Eu até desafio Aristóteles em dizer que antes de sermos "animais políticos", somos animais "de linguagem". Como se o verbo, a palavra fosse apriori a qualquer atividade humana - antes de sermos seres políticos, seres racionais, somos seres de linguagem - como se a ação de significar tudo fosse uma necessidade humana. Mais uma vez, parabéns pelo texto!

Giuliano Gimenez disse...

quanta arrogância, bicho!

=]

Otávio disse...

pq???