sexta-feira, 21 de março de 2008

Lembranças do Seminário Menor

para Rubem Alves, teólogo e grande leitor de Camus

Ao ler no Rascunho que um tal de Alberto da Costa e Silva guarda de sua infância a bucólica lembrança do cheiro de esterco e leite, lembrei-me de um secreto episódio de minha época de seminário na cidade de Mallet, que nunca veio à baila. Todo dia de tardezinha, antes da missa das sete, enquanto um tocava o sino e outro contava e separava as hóstias, alguns de nós íamos tirar leite. Nunca fui bom nisto, tinha um certo receio do toque erótico na teta úmida e quente, e a vaca sempre me dirigia um olhar severo de reprovação.
A contragosto, fui iniciado na arte: era preciso firmeza, mão na teta, espuma no balde, aperta e puxa, aperta e puxa, o som borbulhante. No começo, uma mão no balde, outra na teta. Com o tempo, comemorava poder encher as duas mãos, o movimento alternado, sensação de domínio sobre a vaca. É claro que me deixavam sempre a mansa, além de um compreensivo amigo amarrar-lhe as pernas e segurar-lhe o chifre. O importante é que eu crescia, adquiria uma técnica a mais na vida.
Um belo dia, belo mesmo, porque o sol sangrava o céu de entardecer, eu estava deitado na cama lendo a Bíblia, ouvindo o sino que alguém tocava, o chuveiro ligado de um outro no banho, o movimento dos fiéis chegando pra missa, quando a irmã Genoveva, equilibrando-se em si mesma como um pingüim bêbado, entrou no dormitório desesperada:
- Ninguém tirou leite hoje! O padre Jorge vai ficar sem leite!
Ora, eu estava ali pra isso! Corri à estrebaria, prestativo e heróico:
- Pode deixar, irmã!
Era hora de mostrar meu talento, tudo corria certo, até a vaca pareceu sorrir ao me ver. Bunda no banquinho, balde no chão, mãos à teta, aperta e puxa, aperta e puxa, barulhinho, espuma e o balde enchendo, enchendo, branca festa! Até que o ubre foi secando, as mãos já doíam, mas o mais difícil tinha passado, não? Não: estava por vir. A vaca ergueu a pata, digamos que um tanto quanto enlameada, e shuá, cesta! Meu mundo caiu. O tempo urgia. Descalcei o pé do bovino com calma, senti a garganta embargada de choro. Contar pra irmã? E mostrar que sou incompetente? Jamais. Havia outro balde ali, não tive dúvida: tirei minha camiseta de algodão e filtrei o leite ali mesmo, como quem passa café no bule. Lavei a camiseta na torneira:
- Suor, irmã, suor.
Na manhã seguinte todos se admiravam de que eu, fervoroso adepto do café com leite, tomasse preto aquele forte café da irmã Genoveva. Minutos depois, o padre Jorge saía do refeitório dos padres, com mão na barriga e cara de satisfeito. Moral da história? Mais vale uma mão no balde que duas na teta.

Otávio, na sexta-feira santa de 2008.

3 comentários:

Anônimo disse...

Olá Otávio! Obrigada pelo seus comentários! Saiba que nunca antes eu tinha recebido comentários tão bons quanto os seus! Ok, fim da discussão, mas por favor, não me acho mais ou menos inteligente, apenas quis colocar o meu ponto de vista, não quis coloca-lo como sendo uma verdade absoluta! Não discordei de tudo o que você disse, adorei trocar essas idéias contigo, apenas percebi que temos estudos na área da filosofia diferente e portanto temos ponto de vistas diferentes, apenas isso. E você falou de inteligência, né? Eu sempre tenho essa mania de achar que conhecemos as pessoas pelo que ela escreve, lê e ouve (música, etc), e desde o momento que tive contato com o seu blog, com os seus escritos, opiniões, eu passei a te admirar ... então, sem grilos! =P Sem essa de mais ou menos inteligente!

Anônimo disse...

=P
Que história é essa? ahauhauahu
gostei ...
você escreve tão bem que quando fui lendo, mesmo nunca ter te visto e tal, fui até imaginando aqui, as cenas...vc, a vaca, leite, o clero todo... hauahu

Anônimo disse...

"somos tão cínicos às vezes, o tempo todo estmos tentando nos defender.."

Renato Russo, é foda ...

;)