segunda-feira, 3 de agosto de 2009

O amor acaba

O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão; como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado; na insônia dos braços luminosos do relógio; e acaba o amor nas sorveterias diante do colorido iceberg, entre frisos de alumínio e espelhos monótonos; e no olhar do cavaleiro errante que passou pela pensão; às vezes acaba o amor nos braços torturados de Jesus, filho crucificado de todas as mulheres; mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia; no andar diferente da irmã dentro de casa o amor pode acabar; na epifania da pretensão ridícula dos bigodes; nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas femininas; quando a alma se habitua às províncias empoeiradas da Ásia, onde o amor pode ser outra coisa, o amor pode acabar; na compulsão da simplicidade simplesmente; no sábado, depois de três goles mornos de gim à beira da piscina; no filho tantas vezes semeado, às vezes vingado por alguns dias, mas que não floresceu, abrindo parágrafos de ódio inexplicável entre o pólen e o gineceu de duas flores; em apartamentos refrigerados, atapetados, aturdidos de delicadezas, onde há mais encanto que desejo; e o amor acaba na poeira que vertem os crepúsculos, caindo imperceptível no beijo de ir e vir; em salas esmaltadas com sangue, suor e desespero; nos roteiros do tédio para o tédio, na barca, no trem, no ônibus, ida e volta de nada para nada; em cavernas de sala e quarto conjugados o amor se eriça e acaba; no inferno o amor não começa; na usura o amor se dissolve; em Brasília o amor pode virar pó; no Rio, frivolidade; em Belo Horizonte, remorso; em São Paulo, dinheiro; uma carta que chegou depois, o amor acaba; uma carta que chegou antes, e o amor acaba; na descontrolada fantasia da libido; às vezes acaba na mesma música que começou, com o mesmo drinque, diante dos mesmos cisnes; e muitas vezes acaba em ouro e diamante, dispersado entre astros; e acaba nas encruzilhadas de Paris, Londres, Nova York; no coração que se dilata e quebra, e o médico sentencia imprestável para o amor; e acaba no longo périplo, tocando em todos os portos, até se desfazer em mares gelados; e acaba depois que se viu a bruma que veste o mundo; na janela que se abre, na janela que se fecha; às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue consigo; às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido; mas pode acabar com doçura e esperança; uma palavra, muda ou articulada, e acaba o amor; na verdade; o álcool; de manhã, de tarde, de noite; na floração excessiva da primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno; em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba.
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Paulo Mendes Campos
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Este não é um texto dos mais alegres, mas é talvez o mais belo texto de PMC e, como diria Rubem Alves, "é preciso não confundir beleza com flores e riachos cristalinos. Belos são os oceanos enfurecidos, os desertos queimados pelo sol, os abismos gelados das montanhas, o furacão furioso, os olhos do tigre, os vulcões em erupção".

4 comentários:

Rabisco disse...

Olá Otávio!
Cheguei aqui por acaso mas estou a gostar muito!
Parabéns!
Este texto pode mesmo não ser muito feliz, mas é lindo mesmo!

Abraço grande

Carolina Braga disse...

seu amor acabou?

e sobre seu comentario lá no meu blog, discordo... eu acho que há muitos grandes amores que dão certos... ;) Pensar daquela forma.. é pensar como a maioria, não gosto...rs

Tullio Stefan disse...

o amor acaba,porque nunca se inicia totalmente,uma chama q mal conhecemos,pois nunca a definimos;dizia João da Cruz '' noite escura seremos julgados pelo amor''Toda sombra vem da luz,a escuridão não é mais q clareza do impossível.
Quanto a citação do Rubens Alves,responsa,o Baudalaire tambem dizia o mesmo da carniça;se não fosse o brilho negro da tristeza,o belo seria apenas a fagulha

Felipe Martynetz disse...

Não obstante o pressuposto religioso, esse texto do Rubem Alves é espetacular; todos os religiosos, carolas, moralistas e outros retardados deviam lê-lo, para alargar sua concepçãozinha vagabunda e xexelenta que condena vilmente o suicídio. Sobre o amor, o Ferreira Gullar tem um texto homônimo muito bom: http://www.releituras.com/fgullar_amor.asp