terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Morte aos suicidas

A expressão "gostar de sofrer" geralmente é usada de forma depreciativa, como se a pessoa em questão, por fraqueza, tivesse desistido da felicidade, assinando assim seu atestado de burrice. No entanto há pessoas que assinariam de bom grado esse atestado, mas como um atestado de fraqueza ou de orgulho e não de burrice, até porque a burrice, se fosse o caso, permaneceria com ou sem tal assinatura. Aliás, a única coisa que ninguém pode escolher é ser burro, pois isto seria, de saída, uma escolha errada, e para fazer uma escolha errada é preciso ser burro antes mesmo de fazê-la. Portanto, ninguém é burro porque quer, e se isso ajudar a diminuir o preconceito de alguns já me dou por satisfeito.
O que acontece, normalmente, é que se toma pela expressão "gostar de sofrer" a idéia de gostar de ser triste, por exemplo. Mas poderíamos dar muitos outros exemplos: masoquismo, gostar de dar vexame etc., em nenhum dos casos a pessoa gosta de sofrer, pois esta expressão, por si só, é um contra-senso. O fato é que, como (i) cada um tem uma concepção da felicidade, que aliás é algo que por si só não tem sentido, e (ii) o ser humano é um fracasso em matéria de comunicação, de modo que a falta de comunicação me parece ser a causa de todos os males, a concepção de felicidade do outro sempre parece mais burra.
Uma das leis mais ignóbeis, a meu ver, é a que pune a tentativa de suicídio. Pra mim isto só prova a artificialidade desta mesma lei e, com isso, o abismo que há entre o legítimo e o legal, isto é, basicamente, entre o justo da ética e o justo da política. Não espanta que, entre aqueles que fazem as leis, grande parte seja formada por radialistas demagogos e pastores de igreja eleitos democraticamente, em suma: pessoas que, ao invés de manter seus preconceitos limitados pela liberdade de crença e opinião, no nível do direito, querem estipular para todos, no nível do dever, aquilo que só é válido para seu círculo, ainda que estes círculos sejam grandes representantes dos valores de massa. Isto prova ainda que a lei se fundamenta na e se caracteriza pela punição mais do que pelo bem comum. Não fosse assim, daríamos aos suicidas a pena capital e sairiam todos ganhando. Aliás, quer melhor ocasião para a pena capital?
O suicida não é, e não pode ser, na minha opinião, alguém fora de suas capacidades mentais que de repente viu um revólver e resolveu "estourar os miolos", pelo menos não, por assim dizer, o verdadeiro suicida, quer dizer, aquele que mata pelo mesmo motivo que faz os homicidas, estes sim, criminosos: o seu suposto livre-arbítrio, fora disso, tudo o mais será mero acidente, e é ridículo punir alguém por um acidente. Uma tentativa de suicídio, entretanto, não é um acidente, tudo o que temos a fazer é dar ao suicida uma segunda tentativa, de preferência indolor e, no mínimo, uma trégua para o caso de ele não aceitar, já que, com a desistência, ele se redime por isso mesmo de seu suposto crime: é como se o assassino ressuscitasse a vítima e pronto, iam todos passear no parque.
O que quero dizer é que o suicida é uma pessoa tão comum quanto qualquer outra, assim como aquelas que "gostam de sofrer". Aliás, o suicida é aquele cuja felicidade só depende dele, ele é autônomo por excelência, opta pela morte como outros, do alto de sua heteronomia, optam pelo sexo. Mais do que isso, é alguém que escolhe como, quando e onde morrer, além de dar à sua morte e, pelo mesmo ato, à sua vida - tantas vezes medíocre -, a dignidade de um porquê. Muito melhor do que alguém que, um belo dia, tem sua cabeça esmagada por um caminhão.
Voltando aos que "gostam de sofrer", dentre os quais eu sou o primeiro (risos): vivemos hoje uma ditadura da felicidade, é engraçado como qualquer outdoor idiota se importa com a sua felicidade, ainda que seja apenas a felicidade da novela das oito. E como muitos preferem se contentar com esta felicidade a encontrar um mínimo de prazer na tristeza, que será sempre inevitável, vale qualquer coisa pra "ser feliz". Ora, todas as vezes que me senti próximo desta idéia vaga de felicidade, não me senti senão ansioso, inseguro e vulnerável, além do retorno da tristeza se tornar uma ameaça constante, ameaça que, infalivelmente, se realiza, e isto porque eu ainda não conheci a verdadeira felicidade, pois esta se caracteriza, essencialmente, pelo tédio.
De resto, ser feliz é ipso facto largar a felicidade na mão dos outros, e como diria Ibsen: "o homem mais forte é aquele que está mais só". Com efeito, a liberdade é muitas vezes melhor do que a felicidade, pelo menos melhor do que a felicidade da novela das oito. O problema é quando entra em jogo a liberdade da novela das oito, mas aí já é outra história...

6 comentários:

Cris Medeiros disse...

É um texto que faz pensar!

Eu como alguém que já tentou o suicidio algumas vezes, algumas pra chamar a atenção e outras querendo morrer de verdade, acho que felicidade é uma utopia tanto quanto a liberdade. Sempre estamos preso a algo, por menor que aquilo possa parecer, um ser humano totalmente livre não existe. E felicidade é o mesmo pra mim, não existe completamente, existe momentos de tristeza e alegria!

Beijocas

Anônimo disse...

Texto absolutamente magnífico, meu velho. Uma das melhores coisas que já li sobre o assunto; fiquei tão pasmo ao lê-lo que merecia um comentário melhor elaborado, mas a ansiedade me impele a comentar, ainda que à guisa de alívio: tu, como poucos, sabes o que penso sobre o suicídio. Diferentemente desse clichê do senso comum de que "o suicídio é uma atitude covarde", defendo que é, não só um ato de coragem, como também o mais corajoso imaginável. Como o Ruy Carlos Ostermann diz naquela entrevista ao Juca Kfouri, citando o Albert Camus, é o ato humano mais transcendente. Há um pequeno texto da literatura árabe que me parece a perfeita parábola para explicar o que penso a respeito: procure "A violeta ambiciosa",do Gibran Khalil Gibran. Um conto estupendo.

Anônimo disse...

Olá! Olha, eu ADOREI esse texto! Qdo li a parte que ngm é burro pq quer, lembrei do meu namorado... Realmente, tem a ver.

Bom, a concepção que vc tem da tristeza é a concepção que eu tenho de felicidade... Me sinto mal, muito mal, vivendo sem. Mas tbm, qdo estou numa época normal (p mim), feliz, não vivo com medo de ficar triste ou de as coisas darem errado...

Posso estar enganada ou sendo intrometida, mas a impressão que eu tenho é de que vc não experimentou a felicidade plena ainda, para meio que renegá-la tanto...

Um beijo.

O Antagonista disse...

Cara, seu texto é simplesmente fantástico. Eu tive que parar na metade e voltar ao começo para ler tudo de novo com o dobro da atenção normal... sensacional!

valeu.

Anônimo disse...

ota, ota!

publica a parada aê! artigo de prima. e o pior, meu chapa, é a gente se identificar com as novelas das oito. sempre o bom e velho ganho burguês.

giulianoquase.

Sabrina disse...

como se libertar da idéia de felicidade? belo texto!