sábado, 3 de novembro de 2007

Carta de amor ao meu inimigo mais próximo

Parafraseando Oscar Wilde, posso dizer que não sou tão inteligente a ponto de ter inimigos, no entanto, pode ser que alguém mais inteligente que eu, vista a carapuça. Vamos a Gullar:

espero-te entre os dois postes acesos entre os dois apagados naquela rua onde chove ininterruptamente há tempo; procuro tua mão descarnada e beijo-a, o seu pêlo roça os meus lábios sujeitados a todos os palimpsestos egípcios; cruzas o mesmo vôo fixado num velho espaço onde as aves descoram e o vento seca retorcido pelo grave ecoar das quedas capilares; apalpo o teu cotovelo entediado, amor, teu cotovelo roído pelo mesmo ar onde os olhares se endurecem pela cicatrização das referências ambíguas, pela recuperação das audácias, pelas onomatopéias das essências; amor!, vens, cada sono, com tuas quatrocentas asas e apenas um pé, pousas na balaustrada que se ergue, como uma pirâmide ou um frango perfeito, do meu ombro à minha orelha direita, e cantas:

ei, ei, grato é o pernilongo aos
corredores desfeitos
ei, ei Ramsés, Ramsés brinca com
chatos seculares

bem, quero que me encontres esta noite na Lagoa Rodrigo de Freitas, no momento exato em que os novos peixes conheçam a água como não conheces jamais o ar nem nada, nada. Iremos, os dois, como um gafanhoto e um garfo de prata, fazer o percurso que nasce e morre de cada pé a cada marca, na terra vermelha dos delitos, queridinho!
Ferreira Gullar

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