sexta-feira, 9 de março de 2007

Efeito-estufa (ou O sorvete)


Pediu um sorvete:
- Quanto é?
- Um real, o big-italian.
- Dá um. - tomou o sorvete nas mãos cuidadosas - E colherinha?
- Acabou.
Os vinte-oito graus no abafado terminal de ônibus estavam de derreter. Começou a lamber em volta da casca o creme que escorria. Sentia-se ridículo fazendo isto, quase obsceno, mas prosseguiu, e era preciso que girasse o sorvete com rapidez incomum. A parte inferior afinou, era, pois, preciso comer a parte de cima ou tudo ruiria. Não havia tempo, então dava abocanhadas histéricas que lhe faziam doer os dentes. Tinha a impressão de que todo o terminal o observava, enquanto curvava-se com golpes caninos contra aquela guloseima. Já não tinha coragem de olhar para os lados, só queria acabar com aquilo. Não pôde, o creme lhe escorreu nas mãos, sentiu grande constrangimento, lembrou de como as mulheres sempre o desprezavam e de como seu chefe o humilhava, queria era sair dali, sumir. O guardanapo grudava-se à casca, em vão tentava desgrudá-lo e lançá-lo em pedaços ao chão. Com o movimento abrupto, lambuzou uma adolescente que passava com a mãe. Ensaiou uma desculpa educada, mas o sorvete lhe escorreu nos cantos da boca e a menina afastou-se assustada, conduzida pela mãe.
O ônibus chegou, ele engoliu o resto morno na boca e foi sentar no fundo.
- Calor, né? - disse alguém.
- Pois é... - concordou ele.

(Otávio)

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