sábado, 21 de março de 2020

A aranha na parede

É sábado. Ainda na cama, abro o olho e vejo uma terrível aranha na parede. Não: não foi aranha, nem foi na parede, mas foi o suficiente para tirar o meu sono. Já diria o poeta: o amor é isso, hoje beija, amanhã não beija. Esse sábado não beijou, preferiu apartar-se mais uma vez. Em seu lugar, surge sempre essa paisagem absurda: tudo que sempre esteve ali, porém “solto” como numa exposição. A roupa no cabide obedece apenas ao capricho de um curador, que em sua mente embriagada de arte quer mostrar ao público que nada faz sentido. Porque o primeiro impulso do público é vestir a roupa e ir pro trabalho. Mas... é sábado. No tanque há duas ou três folhas secas. Voaram até ali. A água da máquina irá envolvê-las numa dança plena de sentido. O único sentido que sobrou neste sábado: a complexidade da causa e do efeito. Passeio pela exposição em que acordei, como por engano. A garrafa de vinho vazia é uma peça interessante. Foi deixada sobre a mesa. Afastando-a, quase leio uma explicação no guardanapo em branco: esta garrafa simboliza a embriaguez desmedida de uma pessoa absurda; a uva, não por acaso, é tempranillo, que segundo os especialistas, “não envelhece bem” – a acidez é baixa, tem a elegância dos vinhos jovens. Também quem o bebeu não envelhece bem. Pois o tempo passou e não aprendeu a forjar um sentido, a ver a roupa fora do cabide, acompanhando o movimento do corpo, torcendo-se com as articulações. Mais do que forjá-lo, esforçou-se por relativiza-lo, com sucesso. É só isso: às vezes a engrenagem para, não se sabe bem por que, mas de todo modo ela volta a girar. Deixarei que isso aconteça amanhã. Só os suicidas têm real sede de sentido, e dela morrem. Nós, os não suicidas, convivemos bem com o absurdo. Pelo mesmo motivo que ainda não retirei as folhas secas do tanque, deixarei que os afagos do amor se afastem, e que em seu lugar venha a tempestade de areia. Basta fechar bem os olhos e a boca e aguardar um instante. Se olhar pela janela, ou melhor, pelo celular, vou ver a vida acontecendo. Posso ver todo este movimento como uma dança louca, um teatro incompreensível, mas me lembro que faço parte disto tudo. Não optei pelo suicídio porque o mundo não se tornou totalmente estranho, nem acho que se tornará. Eu danço a mesma dança que eles. Às vezes eu paro, mas ninguém percebe. Depois de amanhã é segunda, e a aranha não estará mais na parede, estará grudada na sola de algum chinelo; sentirei sono, mas levantarei cedo, vestirei a roupa e, abrindo a janela, ouvirei a música do mundo. Será hora de voltar a dançar.

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