sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Citação



Todos os dias ela ligava
pra lembrar que estava tudo acabado.
Mas sempre esquecia de dizer adeus.


RAUL POUGH
foto by ricardo pozzo

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Crepúsculo

Um amigo meu com quem estive esses tempos no Arpoador, aqui, na cidade maravilhosa, publicou esses dias um belíssimo texto em prosa, no blog pó&teias, que vale à pena ser reproduzido aqui:

Apresentei dia desses, a um camarada meu de Curitiba, algumas das famosas praias do Rio de Janeiro: Flamengo, Urca, Leblon e Arpoador, interessante, pois já me sentia pouco à vontade ou desacostumado com vários aspectos bem próprios dos litorâneos, ainda mais dos cariocas e fluminenses, meus conterrâneos, às vezes citadinos tão soberbos de seu litoral, cuja fama e beleza é proporcional à desfiguração da cidade, mascarada para o mundo de Globo e Olimpíadas. Contudo, aqui existem pedras e existem orlas, praias onde não fiz castelos de areia, mas caminhei sobre os avatares do horizonte; há mais de seis anos não subo os mirantes que dão ornamento às encostas e quebra-mares, que, para mim, sempre foram a parte mais fascinante de um litoral, assim como a maresia da noite; ironicamente nem mesmo os meus pés se equilibram naquelas pedras com a mesma flexibilidade de antes, me esqueci até o simples hábito de lavar o chinelo no mar e tirar a areia enquanto se anda descalço no calçadão, ex-carioca mesmo; revisitar um lugar, parece uma nova permissão, a distância nos veta a presença física, regressos, somos licenciados da distância, no entanto agora, apesar da licença, sinto-me embargado no estranho deslocamento da memória. Por fim, tivemos o brinde amargo do calor e o crepúsculo de um sol anátema; dizem os meteorologistas que estamos sob um pico extraordinário de calor, provavelmente dirão o mesmo ano que vem. Ah o sol, causticamente desolador, implacável tal qual o amanhecer que te chama para o cotidiano e não para o mar, esse mesmo sol gerador do calor que de tão quente morrerá como o escorpião suicida quando cercado pelo fogo; sossegados, isso é para daqui a dez bilhões de anos, ele se transformará em carbono e tudo será uma senescente estrela anã branca.

Tullio Stefano

domingo, 27 de setembro de 2009

Conversa de botequim

Nada como chegar em seu quarto num domingo à noite e, antes de fechar a janela, ouvir uma música ao vivo bem distante, algo como amor com jeito de virada... depois ligar a tv meio chuviscada e afastar os chinelos ainda sujos de areia pra deitar na cama. Faz umas duas semanas que vim pro Rio pra estudar e só hoje conheci Copacabana, com direito à estátua de Dorival Caymmi no fim do calçadão da avenida Atlântica. Antes disso, porém, explorei bastante o centro à procura de supermercados, restaurantes e lavanderias, além do próprio quarto onde estou, depois de ficar nums hotéis na Lapa e correr Botafogo e Laranjeiras atrás de albergs e pensões: não adianta, fiquei no centro mesmo, que pelo menos é um local bem estratégico. É verdade que esses dias fui perseguido três quadras por um engraxate na avenida Rio Branco e que também já fui assaltado, mas a culpa foi minha que fui andar pelas ruas do centro no fim de semana, quando a cidade está tão deserta que parece ter sido devastada por um furacão. Além disso, mea culpa também por afetar qualquer coisa de turista, deve haver uma luzinha que se acende em minha testa e me denuncia como estrangeiro. Por sorte eu não falo muito, a não ser de vez em quando pra pedir um prato feito ou um assaí, nunca tinha comido assaí do jeito que servem aqui, aprendi também a não pedir café com leite, ainda mais leite quente, sendo preferível pedir um pingado ou uma boa média que não seja requentada. Mesmo assim, de uma forma ou de outra meu sotaque sulista acaba vindo à tona, mas como diria um camarada meu: o que importa é a sintaxe e a conjugação. Em linhas gerais, tenho sempre a impressão de que, apesar de estar meio deslumbrado, nada no Rio me parece novo, tudo passa a sensação de que já conheço de algum lugar, seja de um conto de Machado de Assis, que nunca saiu do Rio, seja de um samba de Cartola, que até hoje é superpopular na Lapa, ou seja mesmo de uma novela de Manoel Carlos. Enfim, não sou lá um grande explorador de novos lugares e nem sei se vou conhecer metade dos assim chamados pontos turísticos durante o tempo que estiver aqui, como o Redentor, que Camus chamou de algo como "um lamentável Cristo" ao avistar do navio ou avião quando chegava ao Brasil, ou tantos outros que estamos cansados de ouvir falar, nem que seja das canções da bossa nova. A propósito, outra figura já mais ou menos mítica na cidade é o profeta gentileza, uma espécie de inri cristo melhorado, famoso por seu jargão "gentileza gera gentileza" e por seus escritos nos muros com mensagens de gentileza que, segundo reza a lenda, foram todas pintadas de cinza, daí aquela música da Marisa Monte que conta justamente essa história: apagaram tudo, pintaram tudo de cinza...

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

AOS ÓCULOS

Só fingem que põem
o mundo ao alcance
dos meus olhos míopes.

Na verdade me exilam
dele com filtrar-lhe
a menor imagem.

José Paulo Paes

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Arnaldo Jabor, sobre Edir Macedo

Ouça aqui o áudio de Jabor sobre o vídeo de Edir Macedo. Só não incorporo aqui, porque começa a falar sozinho. E se der tempo de dar uma passada aqui também, verá que as atuais "perseguições" ao bispo não são novas, como ele mesmo gosta de se gabar. Afinal, como diz um dos comentários em seu blog, "falem bem, falem mal, mas falem da universal". E se restar estômago depois disso tudo, não deixe de conferir, no mesmo blog, o áudio em que ele se defende com suas teorias mirabolantes sobre o fogo ardente e chega mesmo a citar Abraham Lincoln, talvez sem saber que se trata de Abraham Lincoln, dizendo que se pode enganar o povo parte do tempo, mas não todo o tempo. É uma pena que ele se esqueça da parte de que é possível enganar parte do povo todo o tempo, porque isso ele já conseguiu provar que é verdade. E viva a teologia da prosperidade!

Citação

(...) E se me entrego às imagens do espelho
ou da água, tendo no fundo o céu,
não pensem que me apaixonei por mim.
Não: bom é ver-se no espaço diáfano
do mundo, coisa entre coisas que há (...)

Antonio Cicero, O País das Maravilhas

sábado, 8 de agosto de 2009

teoria da conspiração: gripe a em curitiba

O Caderno G ideias da Gazeta do Povo desse sábado traz toda uma analogia histórica e literária da nova gripe, comparando-a à gripe espanhola de 1918 e à peste negra da idade média, em mais uma tentativa de afastar as teorias conspiratórias que circulam nos e-mails. De fato, desde quinta-feira sem ler os e-mails, encontrei hoje dois de caráter alarmista na caixa de entrada e, se eu tivesse mais contatos, esse número certamente seria maior. A suspeita de que a imprensa estaria omitindo os casos de morte e etc. me fez lembrar de um artigo de Antonio Cicero sobre o argumento da astúcia do diabo, segundo o qual a maior astúcia deste seria provar que ele, o diabo, não existe, o que viria apenas a confirmar a existência do mesmo. Assim me parece que quanto mais a mídia tenta se justificar dizendo que não está ocultando os números e tal, mais as pessoas torcem o nariz diante da tv e apontam o dedo dizendo: tá vendo! tá vendo! ainda têm a coragem de negar! Esses dias fui na Livraria do Chaim comprar o presente do dia dos pais e um cara estava saindo com um suspiro: é... o jeito é se cuidar! o pessoal aí não tá divulgando mas a coisa tá feia mesmo... O jornal, entretanto, não pôde e nem poderia ignorar solenemente tudo isso e partiu logo pra entrevistas com psiquiatras, historiadores, sociólogos e especialistas do tipo. Quem é hipocondríaco e tem mania de limpeza vai pirar de vez, mas o melhor de tudo são as referências literárias. A reportagem de Anna Simas começa com uma citação d'A Peste, de Albert Camus: "Sei que ainda é preciso vigiar-se sem descanso para não ser levado, num minuto de distração, a respirar para a cara do outro e transmitir a infecção" e, após uma incursão por obras como Ensaio sobre a Cegueira de Saramago e O Mez da Grippe de Valêncio Xavier, a reportagem de Luciana Romagnolli retoma o escritor argelino: "Existencialista francês como Sartre, com quem rompeu por questões políticas, Camus discutiu no romance A Peste a apatia humana cultivada no cotidiano e só destituída provisoriamente em atmosferas de alerta, como na história da cidade que se atemoriza quando ratos ensanguentados emergem dos subterrâneos prenunciando a agonia que atingirá os moradores, obrigando-os a se confrontar com a precariedade de suas vidas". Apesar de Camus não ser existencialista e muito menos francês, achei super-oportuna a lembrança. É bem isso! Quer a situação seja de pânico, quer não, uma coisa é inegável: ela nos arranca da apatia cotidiana e, assim mais ou menos como uma copa do mundo, nos deixa a todos num certo clima de cumplicidade, transcendendo os problemas pessoais de cada um e os desafetos de cada um para redirecioná-los, problemas e desafetos, a esse grande inimigo em comum: um vírus metade gente, metade porco, metade frango, ou seja, um vírus que, a depeito de toda matemática, tem três metades! Agora, se o problema é sério ou não, não tenho a menor autoridade pra me pronunciar, sei que não estou nem um pouco paranóico. Parece que há a possibilidade de ser decretada calamidade pública e aí adeus volta às aulas. O jeito é pegar um desses romances aí de cima e ficar lendo...

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Ainda sobre o amor

...Não nego razão aos que dizem que cada um deve respirar um pouco, e fazer sua pequena fuga, ainda que seja apenas ler um romance diferente ou ver um filme que o outro amado não verá. Têm razão; mas não têm paixão. São espertos porque assim procuram adaptar o amor à vida de cada um, e fazê-lo sadio, confortável e melhor, mais prazenteiro e liberal. Para resumir: querem (muito avisadamente, é certo) suprimir o amor. Isso é bom. Também suprimimos a amizade. É horrível levar as coisas a fundo: a vida é de sua própria natureza leviana e tonta. O amigo que procura manter suas amizades distantes e manda longas cartas sentimentais tem sempre um ar de náufrago fazendo um apelo. Naufragamos a todo instante no mar bobo do tempo e do espaço, entre as ondas de coisas e sentimentos de todo dia. Sentimos perfeitamente isso quando a saudade da amada nos corrói, pois então sentimos que nosso gesto mais simples encerra uma traição. A bela criança que vemos correr ao sol não nos dá um prazer puro; a criança devia correr ao sol, mas Joana devia estar aqui para vê-la, ao nosso lado. Bem; mais tarde contaremos a Joana que fazia sol e vimos uma criança tão engraçada e linda que corria entre os canteiros querendo pegar uma borboleta com a mão. Mas não estaremos incorporando a criança à vida de Joana; estaremos apenas lhe entregando morto o corpinho do traidor, para que Joana nos perdoe. Assim somos na paixão do amor, absurdos e tristes. Por isso nos sentimos tão felizes e livres quando deixamos de amar. Que maravilha, que liberdade sadia em poder viver a vida por nossa conta! Só quem amou muito pode sentir essa doce felicidade gratuita que faz de cada sensação nova um prazer pessoal e virgem do qual não devemos dar contas a ninguém que more no fundo de nosso peito. Sentimo-nos fortes, sólidos e tranquilos. Até que começamos a desconfiar de que estamos sozinhos e ao abandono trancados do lado de fora da vida...

(Rubem Braga, "Sobre o Amor, etc." in 200 crônicas escolhidas)

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

O amor acaba

O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão; como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado; na insônia dos braços luminosos do relógio; e acaba o amor nas sorveterias diante do colorido iceberg, entre frisos de alumínio e espelhos monótonos; e no olhar do cavaleiro errante que passou pela pensão; às vezes acaba o amor nos braços torturados de Jesus, filho crucificado de todas as mulheres; mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia; no andar diferente da irmã dentro de casa o amor pode acabar; na epifania da pretensão ridícula dos bigodes; nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas femininas; quando a alma se habitua às províncias empoeiradas da Ásia, onde o amor pode ser outra coisa, o amor pode acabar; na compulsão da simplicidade simplesmente; no sábado, depois de três goles mornos de gim à beira da piscina; no filho tantas vezes semeado, às vezes vingado por alguns dias, mas que não floresceu, abrindo parágrafos de ódio inexplicável entre o pólen e o gineceu de duas flores; em apartamentos refrigerados, atapetados, aturdidos de delicadezas, onde há mais encanto que desejo; e o amor acaba na poeira que vertem os crepúsculos, caindo imperceptível no beijo de ir e vir; em salas esmaltadas com sangue, suor e desespero; nos roteiros do tédio para o tédio, na barca, no trem, no ônibus, ida e volta de nada para nada; em cavernas de sala e quarto conjugados o amor se eriça e acaba; no inferno o amor não começa; na usura o amor se dissolve; em Brasília o amor pode virar pó; no Rio, frivolidade; em Belo Horizonte, remorso; em São Paulo, dinheiro; uma carta que chegou depois, o amor acaba; uma carta que chegou antes, e o amor acaba; na descontrolada fantasia da libido; às vezes acaba na mesma música que começou, com o mesmo drinque, diante dos mesmos cisnes; e muitas vezes acaba em ouro e diamante, dispersado entre astros; e acaba nas encruzilhadas de Paris, Londres, Nova York; no coração que se dilata e quebra, e o médico sentencia imprestável para o amor; e acaba no longo périplo, tocando em todos os portos, até se desfazer em mares gelados; e acaba depois que se viu a bruma que veste o mundo; na janela que se abre, na janela que se fecha; às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue consigo; às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido; mas pode acabar com doçura e esperança; uma palavra, muda ou articulada, e acaba o amor; na verdade; o álcool; de manhã, de tarde, de noite; na floração excessiva da primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno; em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba.
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Paulo Mendes Campos
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Este não é um texto dos mais alegres, mas é talvez o mais belo texto de PMC e, como diria Rubem Alves, "é preciso não confundir beleza com flores e riachos cristalinos. Belos são os oceanos enfurecidos, os desertos queimados pelo sol, os abismos gelados das montanhas, o furacão furioso, os olhos do tigre, os vulcões em erupção".

domingo, 19 de julho de 2009

Camus no Brasil

Tempo magnífico. Uma jornalista encantadora e míope. Correspondência. Almoço com os Delamain, numa espécie de buffet de estação de trem - naturalmente, a neon. Refeição. Meditações sombrias. No fim da tarde, dirijo-me a uma escola de teatro. Entrevista com professores e alunos. Jantar na casa dos Chapass, com o poeta nacional Manuel Bandera, pequeno homem extremamente fino. Depois do jantar, Kaïmi, um negro que compõe e escreve todos os sambas que o país canta, vem cantar com seu violão. São as canções mais tristes e mais comoventes. O mar e o amor, a saudade da Bahia. Pouco a pouco, todos cantam e vê-se um negro, um deputado, um professor da Faculdade e um tabelião cantarem esses sambas em coro, com uma graça muito natural. Totalmente seduzido.

19 de julho de 1949

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Elogio da Astrologia

Apesar de não conseguir acreditar em coisas como Deus ou imortalidade da alma e, por incrível que pareça, nem mesmo na infalibilidade papal, devo admitir, envergonhado, que acredito em horóscopo. Talvez porque o meu signo nunca disse que, se eu não jogasse naquele bicho ou naquele número da sorte, eu queimaria no fogo do inferno, mas no máximo algo como "você poderá se arrepender" ou "poderá haver complicações". Nada tão assustador... Além do mais, nada mais cético do que o astrólogo que, após agrupar uma série de frases ambíguas (com no mínimo três sentidos cada uma), acrescenta a todas o escopo "poderá talvez" e, com o texto pronto, após o ponto final, escreve: "Ou não". Aliás, na Astrologia até o ponto final tem duplo sentido, se olharmos bem.
Além disso, meu signo nunca falou muito mal de mim. Pelo contrário, disse sempre que sou inteligente, criativo, comunicativo, empreendedor, que tenho bom coração... e com uma tal entonação, com tamanha ênfase, que chego a ter pena dos outros signos, provavelmente uns idiotas miseráveis. Ao fim, posso fechar o jornal ou desligar o rádio assobiando e tomar meu café com pose de intelectual, olhando o crepúsculo pela janela com a sensibilidade que só os grandes espíritos têm. E se alguma vez meu signo falou mal de mim, posso dizer que o fez com simpatia e cumplicidade, tipo: você pode até não se dar bem no trabalho, nem no amor, espantar os amigos, ser expulso da família, mas tudo isso acontece sempre com os melhores geminianos. Quer dizer, além de cético, o horóscopo é determinista, o que é ótimo, já que a doutrina do livre-arbítrio desperta demais meu complexo de culpa.
Fico pensando no astrólogo quando se depara com a tarefa de descrever seu próprio signo. Deve escolher diligentemente as melhores qualidades, cuidando para evitar contradições como "extrovertido, reservado..." e, ao final, para dissipar qualquer suspeita, colocar: "Além de tudo, as pessoas deste signo costumam ser muito modestas". Sem falar que, ao tratar dos defeitos, a simpatia e a cumplicidade se tornariam uma complacência, uma condescendência tal, de dar inveja ao "vá em paz" de Jesus.
E o principal, the last but not the least: mais do que cético e determinista, o horóscopo não emite juizos morais - longe de ser prescritivo como as religiões éticas, é antes descritivo como as religiões mágicas. Está mais próximo, pois, juntamente com todo esoterismo, da mitologia que da filosofia, do politeísmo que do monoteísmo, do ser que do dever ser. Consequentemente - e era aqui que eu queria chegar - está mais preocupado com esta vida do que com uma eventual além-vida. E é por essas e outras que sou chegado numa Astrologia, que "pago pau" pros caras, porque no fundo, afinal, amomuitotudoisso. Mas como diria Gilberto Gil: até que nem tanto esotérico assim... Ou não.

terça-feira, 9 de junho de 2009

Citação

Duvidar não significa descrer. Quem descrê já não duvida. Duvidar significa crer em coisas distintas e incompatíveis, ao mesmo tempo. O Ceticismo apareceu na Grécia pelo século III A. C., quando a cultura grega estava saturada de experiência criadora, possibilitando opções múltiplas e divergentes. Em essência, a disposição cética revela-se como forma refinada de tentação intelectual para gozar a simultaneidade dos opostos. Cético é quem experimenta a inefável fruição do possível, ora crendo que sim, ora crendo que não... O cético disfarça seu embaraço opcional, pela superior destreza, pela fina elegância com que se mostra capaz de seduzir ouvintes ou leitores ao sustentar os argumentos mais contraditórios sobre o mesmo assunto. (Gilberto de Mello Kujawski, Descartes existencial)

domingo, 7 de junho de 2009

Ao mar*

*do diário de Albert Camus, escrito em viagem de volta dos EUA:

Como é longa essa viagem de volta. Os fins de tarde sobre o mar e essa passagem do sol poente à noite são os únicos momentos em que sinto o coração um pouco descontraído. Terei sempre amado o mar. Ele terá sempre apaziguado tudo dentro de mim.
Terrível mediocridade desse meio. Até agora, não me sujeitei uma única vez à mediocridade que podia me envolver. Até agora. Mas aqui, essa intimidade vai longe demais. E em todos, ao mesmo tempo, esse algo que poderia ir adiante, se apenas...
Dois seres jovens e belos começaram um idílio neste navio, e logo uma espécie de círculo mau fechou-se à sua volta. Esses começos de amor! Eu os amo e aprovo do fundo do coração - até mesmo com uma espécie de gratidão pelos que preservam, neste convés, no meio do Atlântico reluzente de sol, a meio caminho de continentes loucos, as verdades da juventude e do amor. Mas por que não chamar pelo nome também essa inveja que sinto no coração e o desejo tumultuado que se apodera de mim no sentido de redescobrir o coração impaciente que eu tinha aos 20 anos. Mas conheço o remédio, vou olhar para o mar durante muito tempo.
Tristeza por sentir-me ainda tão vulnerável. Daqui a 25 anos, terei 57. Portanto, 25 anos para fazer a minha obra e encontrar o que procuro. Depois, a velhice e a morte. Sei qual é o mais importante para mim. E encontro, ainda, o meio de ceder às pequenas tentações, de perder tempo em conversas vãs ou passeios estéreis. Dominei duas ou três coisas em mim. Mas como estou longe dessa superioridade de que tanto necessito.
Maravilhosa noite sobre o Atlântico. Essa hora que vai do sol desaparecido à lua apenas nascente, do oeste ainda luminoso ao leste já escuro. Sim, amei muito o mar - essa imensidão calma - esses sulcos recobertos - essas estradas líquidas. Pela primeira vez, um horizonte à altura de uma respiração de homem, um espaço tão grande quanto sua audácia. Sempre estive dilacerado entre o meu apetite pelos seres, a vaidade da agitação e o desejo de me tornar igual a esses mares de esquecimento, a esses silêncios desmedidos, que são como o encantamento da morte. Tenho o gosto das vaidades do mundo, dos meus semelhantes, dos rostos, mas, fora do meu tempo, tenho uma regra própria que é o mar e tudo nesse mundo que se lhe assemelha. Ó suavidade das noites, em que todas as estradas oscilam e deslizam por cima dos mastros, e esse silêncio em mim, esse silêncio, afinal, que me liberta de tudo.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Contra-senso

Uma das tripulantes que não chegou a embarcar no avião que caiu no oceano disse que se salvou graças à mão de Deus, o engraçado é que nessas horas ninguém se lembra que também foi a "mão de Deus" que derrubou o avião no oceano...

domingo, 31 de maio de 2009

A igreja dos ateus


para tullio stefano

Se Machado de Assis, há mais de um século, se permitiu criar a Igreja do Diabo, já era hora de criar uma igreja dos ateus, já que são tantos e, mais cedo ou mais tarde, vão acabar se organizando e dominando o mundo.
Bom, uma igreja não é uma igreja se não distinguir, desde já, o certo e o errado, o bem e o mal. Pois bem, o mal está no agnosticismo, que dissemina a falta de fé entre os ateus, levando-os a um quadro de niilismo profundo, chegando às vezes a evoluir para o suicídio. Assim, já que eu me auto-elegi para fundar esta igreja, tratei de escolher um representante do ateísmo no mundo animal: tenho aqui uma tartaruga, já bem velhinha, apontei pra ela e disse “tu és a pedra, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja e as portas do agnosticismo não prevalecerão contra ela”. Como ela não disse nem que sim nem que não, assim que ela morra, farei do seu casco, oco como a vida, a pedra angular de nossa igreja.
Outra lição que tiramos dos nossos colegas cristãos é a de dividir o trabalho em ministérios ou pastorais, para dar a impressão de engajamento e seriedade. Logo, em homenagem a ateus famosos, resolvi que os ministérios seriam, pra começar, três: o Ministério Dráuzio Varella, de cura e libertação; o Ministério Oscar Niemeyer, das causas sociais; e o Ministério Caetano Veloso, de louvor e adoração. Assim, com um representante de cada grande área, biológicas, exatas e humanas, demasiado humanas, será mais fácil dominar o mundo.
Os livros sagrados também podem começar com três: na base do velho testamento ficará “Assim falou Zaratustra” do profeta Friedrich Nietzsche; no novo testamento, Simone de Beauvoir emplacará com “Todos os homens são mortais”, onde explica que as mulheres, sim, é que são imortais; e o catecismo ficará por conta de Michel Onfray, com seu “Tratado de ateologia”. Nos próximos concílios, poderá ser negociada a entrada de Russel, com “No que acredito”, censurado como apócrifo devido à positividade subversiva do título. No índex entrará toda Patrística e Escolástica, além do Pe. Vieira.
Uma última coisa a ser considerada, última na ordem mas não na importância, é o dízimo que, já vou avisando, será chamado trízimo ou quadrízimo, já que a maioria dos ateus é oriunda de classes sociais mais altas (e, supostamente, mais esclarecidas). Enfim, como diria o profeta Karl Marx: ateus do mundo inteiro, uni-vos! E como diria Paulo de Toledo:

terça-feira, 19 de maio de 2009

tem piedade, satã, desta longa miséria!

O verso acima, de Charles Baudelaire, digno dos grafites nos muros e paredões de Curitiba, serve de epígrafe ao poema Balada da Cruz Machado, de Rodrigo Madeira, também publicado sob o pseudônimo Renata Amador, na edição 15 do Escritoras Suicidas. Adaptado para o audiovisual por Terence Keller, com direito a tomada da catedral deformada através do tubo do ligeirinho, o poema virou filme, como narra Rafael Urban em sua matéria para a Folha de Londrina de 26 de junho de 2008. Quase dois anos depois de idealizado e pouco mais de um ano após as filmagens, o curta estréia nesta sexta-feira, 22 de maio, às 20 horas, na Cinemateca, não muito longe, aliás, do próprio cenário, a rua Cruz Machado, aquela que termina, ao desenlace da esquina, nos pés de uma catedral.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

DIALÉTICA



É claro que a vida é boa
E a alegria, a única indizível emoção
É claro que te acho linda
Em ti bendigo o amor das coisas simples
É claro que te amo
E tenho tudo para ser feliz

Mas acontece que eu sou triste...

Vinícius de Moraes

sábado, 2 de maio de 2009

Nazismo em Curitiba

Ao ler esta reportagem, não sem um certo susto e a boa e velha náusea, fui atrás dos referidos sites de orientação nazista, quer dizer, de "orgulho branco", que fazem apologia ao nazismo e coisas do tipo. Como, no caso, os assassinados eram nazistas, o comentário de um tal de Mr. Blonde em um destes sites diz: "Isto é um assassinio a um casal nacionalista, cujo o único 'crime' foi a sua ideologia politica...", e, não satisfeito em pôr crime entre aspas, conclui: "Que raiva...". Acontece que foi praticado, ao que tudo indica, em nome de outra ideologia política, na verdade outra corrente da mesma ideologia. As vítimas, apesar de serem nazistas, eram mais ou menos contra a violência (o que - parafraseando a reportagem - deporia contra o grupo e complicaria a aceitação do movimento pela sociedade), por isso foram exterminadas, provavelmente pelos próprios nazistas, que pra mim não passam de uma única grande corrente. Este fato parece também não ter sido observado por outro destes sites apologistas (atenção para a suástica), que se contenta em reputar o motivo como 'desconocido' e citar 'el delegado' (a notícia é brasileira, mas o blog é argentino): “Aún no sabemos si ellos fueron muertos por una persona que estaba dentro del coche con ellos o si fueron abordados en la carretera por el asesino”, além de aventar - faz tempo que estou querendo usar esta palavra - a hipótese de latrocínio. No terceiro dos 3 sites em questão, sob o lema "White Pride World Wide", não consegui achar sobre o assunto, mas como se trata de nazismo escarrado, pude achar coisas muito mais repugnantes, como esta ironia no título de um dos links: Mamãe, eu sou contra o Nazismo!!, e coisas pitorescas como a referência à afirmação de Lula de que 'brancos de olhos azuis' seriam responsáveis pela crise financeira ou algo assim: o tipo de afirmação sem pensar que joga água no moinho de oportunistas, e até uma espécie de fundamentação bíblica para a anti-miscigenação, o que não espanta nem um pouco, já que a Bíblia é cheia destes disparates e os nazistas são plenamente capazes de religiosidade, como se vê pela sua tendência ao culto de Odin, "o deus dos nórdicos", e por sua crença na vida após a morte em Valhalla, "aonde vivem os fortes". Mas isto não vem ao caso, o fanatismo político destes seres humanos (putz!) já vai muito mais longe do que este seu inocente devaneio religioso, já estou fugindo do tema, como diria o Mr. Blonde: Que raiva... Expressão que, aliás, vinda de entusiastas do crime de ódio (e sem aspas, por favor!), não poderia ser mais cínica.

sábado, 18 de abril de 2009

de Graciliano para Heloísa

Para quem ainda acredite na verdade global do mito Graciliano Ramos, a leitura das suas cartas de amor à noiva, Heloísa Medeiros, há de ser no mínimo desconcertante. O derramamento sentimental delas obedece ao pé da letra os cânones tradicionais da epistolografia do amor-paixão, a qual costuma ser tanto mais hiperbólica nos seus arroubos quanto casta nos seus propósitos confessos. (...) Embora as cartas de resposta de Heloísa nunca tenham sido publicadas, as referências que lhe faz seu apaixonado missivista dão a entender ter havido nelas uma reserva, um comedimento totalmente nos antípodas do arrebatamento dele. (...) Nisso, e em outros particulares, as missivas de Graciliano a Heloísa ilustram à maravilha alguns dos principais lugares-comuns da retórica amorosa.

José Paulo Paes

segunda-feira, 9 de março de 2009

Camus (3)


"Noite de insônia. O dia todo, passeio uma cabeça oca e um coração vazio. O mar está mau. O céu fechado. O convés deserto. Além disso, desde Dacar não somos mais do que uns vinte passageiros. Cansado demais para descrever o mar hoje". (Albert Camus, Diário de Viagem. América do Sul, 8 de julho de 1949)

terça-feira, 3 de março de 2009

Mais uma de ônibus


O ligeirinho pára no tubo, entro pela porta da frente. Passo o olho pelo interior do ônibus. Um gordo em pé, mal acomodado na parte reservada a cadeiras de roda, olha para trás, como se procurasse alguém. Seu pescoço, todo torcido, não me deixa ver seu rosto, de modo que vejo apenas sua mandíbula ruminando um chiclete.
Procuro olhar a rua, molhada da chuva. À minha frente um banco vazio, nele uma pequena poça de água dança de um lado a outro, embalada pelo andar do veículo. Sem querer, minha vista encontra o gordo de novo, olhando para trás outra vez.
De repente o motorista freia, ou bate, meus pés pulam do piso. Todos gritam, fazem exclamações, uns riem. Nesta fração de segundo, olho o lugar das cadeiras de roda, desta vez o gordo não olha para trás. Do ferro em que está sentado, é lançado num salto para frente, batendo com o rosto contra o ferro de segurar-se. Após o choque, afinal consigo ver seu rosto, o olhar com alto grau de estrabismo, o que lhe dá um ar de perdido. “Então ele era vesgo”, pensei, “ou ficou agora”?

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

O sexo dos anjos

"Ó delicados! Vós que pousais o amor sobre ternos violinos ou, grosseiros que o pousais sobre os metais! Vós outros não podeis fazer como eu, virar-vos pelo avesso e ser todo lábios" Maiakovski


Meu amor, eu te ofereço
Toda minha falta de assunto
Minha ausência de vaidade
Que nem chega a ser modéstia
Meu pé descalço
Minha cabeça raspada
Meu corpo no escuro
E te ofereço o meu silêncio
Minha boca calada
Minha respiração sincopada
Meu sopro no coração
Minha caixa torácica
E te ofereço minha solidão
Minha mão sem anéis
Meu pulso cortado
Minha fratura exposta
Minha flauta vertebrada

E não te peço nada em troca
Não te peço nada

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

A timidez segundo Luis Fernando Veríssimo

Ser um tímido notório é uma contradição. O tímido tem horror a ser notado, quanto mais a ser notório. Se ficou notório por ser tímido, então tem que se explicar. Afinal, que retumbante timidez é essa, que atrai tanta atenção? Se ficou notório apesar de ser tímido, talvez estivesse se enganando junto com os outros e sua timidez seja apenas um estratagema para ser notado. Tão secreto que nem ele sabe. É como no paradoxo psicanalítico, só alguém que se acha muito superior procura o analista para tratar um complexo de inferioridade, porque só ele acha que se sentir inferior é doença. (...) O tímido nunca tem a menor dúvida de que, quando entra numa sala, todas as atenções se voltam para ele e para sua timidez espetacular. Se cochicham, é sobre ele. Se riem, é dele. Mentalmente, o tímido nunca entra num lugar. Explode no lugar, mesmo que chegue com a maciez estudada de uma noviça. Para o tímido, não apenas todo mundo mas o próprio destino não pensa em outra coisa a não ser nele e no que pode fazer para embaraçá-lo. O tímido vive acossado pela catástrofe possível. Vai tropeçar e cair e levar junto a anfitriã. Vai ser acusado do que não fez, vai descobrir que estava com a braguilha aberta o tempo todo. E tem certeza de que cedo ou tarde vai acontecer o que o tímido mais teme, o que tira o seu sono e apavora os seus dias: alguém vai lhe passar a palavra. (...) O tímido, em suma, é uma pessoa convencida de que é o centro do Universo, e que seu vexame ainda será lembrado quando as estrelas virarem pó.

(Luis Fernando Veríssimo, "Da timidez", extraído de: Comédias da Vida Pública, L&PM, encontrado aqui, onde tem o texto completo)

domingo, 15 de fevereiro de 2009

just like heaven


"Show me show me show me how you do that trick
The one that makes me scream" she said
"The one that makes me laugh" she said
And threw her arms around my neck
"Show me how you do it
And I promise you I promise that
I'll run away with you"
Spinning on that dizzy edge I kissed her face and kissed her head
And dreamed of all the different ways I had
To make her glow
"Why are you so far away?" she said
"Why won't you ever know that I'm in love with you
That I'm in love with you"
You
Soft and only
You
Lost and lonely
You
Strange as angels
Dancing in the deepest oceans
Twisting in the water
You're just like a dream
Daylight licked me into shape
I must have been asleep for days
And moving lips to breathe her name
I opened up my eyes
And found myself alone alone
Alone above a raging sea
That stole the only girl I loved
And drowned her deep inside of me
You
Soft and only
You
Lost and lonely
You
Just like heaven

domingo, 1 de fevereiro de 2009

Mais uma noite sem sono

É estranho estar acordado na escuridão. É como estar consciente sem saber do quê. A lâmpada fluorescente é como se fosse a lua, e o interruptor a primeira estrela no céu. Dizem que, quando vemos uma estrela no céu, às vezes ela não está lá. É que ela fica tão longe, mas tão longe, que a luz leva alguns milhares de anos pra chegar aqui. Se todas as pessoas, quando ficassem deprimidas, pensassem que as estrelas podem nos pregar esta peça, talvez deixassem escapar um sorriso, nem que fosse o riso frio dos que riem só pra mostrar que entenderam o raciocínio, mas ririam assim pra si mesmas, como quem raciocina sozinho, ao ler um texto, por exemplo.
Ler um texto é sempre muito solitário, sobretudo quando se vê, pelo reflexo da janela no seu monitor, que constroem muros do outro lado da rua. Mas, cá entre nós, que sabem eles das estrelas? É uma questão de lembrar que uma estrela existe, mesmo que esteja bem longe, e que ela pode brilhar, mesmo que não exista. Sim, porque as estrelas têm o humor que só os suicidas sabem ter, os suicidas que deixam sobre a mesa apenas um bilhete engordurado dizendo "fui", talvez "adeus" e quem sabe até "I love you, I love you, I love you".
E o leitor que não ria: sofresse da insônia que eu sofro, também transformaria seu quarto num planetário, onde há apenas a lua e uma estrela, que não existe. Mesmo que descobrisse depois, num artigo de Astronomia, que era tudo mentira. Afinal, que sabem os astrônomos das estrelas? Talvez eu ainda possa contar esta história num desses muitos momentos da vida em que nos falta assunto. Quero dizer, não quando se está conversando e a conversa esfria, digo quando nos falta assunto a nós mesmos, quando se está sozinho no escuro, às três da manhã, e não há mais nada pra pensar.
O telefone está cortado, ninguém irá ligar e dizer: "eu sabia que você estava acordado, eu também estava..." Não, o telefone já não pode inspirar mais esperança que uma lâmpada fluorescente. Logo mais, às quatro horas, o jornaleiro virá de moto e eu ouvirei o som do jornal caindo no chão, e o barulho da moto irá diminuindo, diminuindo, até sumir. E eu finalmente fecharei os olhos, devagar, e pegarei carona com o jornaleiro. E iremos, então, até o infinito.

sábado, 31 de janeiro de 2009

Para Chico Buarque

Eu bem que tentei
Tentei chegar do nada
Também nada perguntar
Mas eu só tinha essa aguardente
Tão amarga de tragar

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Entrevista com Sam Mendes

O vazio parece ser um tema comum a sua obra, desde Beleza Americana, não é? É por isso que a crítica chama seu cinema de existencialista?
Existencialista é um adjetivo que pode ter muitos significados. Eu não sei se o que faço é existencialismo. Talvez Soldado Anônimo o fosse. Aquele filme era (Albert) Camus. Não é por acaso que um personagem aparece lendo O Estrangeiro, de Camus. Se existe uma questão constante no que eu filmo, é o fato de sempre haver uma pessoa em crise, que está perdida, sem algo que a guie. Assim eram Kevin Spacey em Beleza Americana e Tom Hanks em Estrada para Perdição. Como artista, é difícil conceituar as raízes daquilo que buscamos. Veja, eu amei O Lutador, um filme simples, emocionante, que traz um ator no melhor de si. Se um crítico me pedisse para explicar o que me atrai nessa simplicidade, eu não saberia dizer.

Fonte: Gazeta do Povo (Caderno G), 28 de janeiro de 2009.

P.S.: Quem é Sam Mendes?

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

posse de Obama

No "mall" que separa o Capitólio do memorial ao Lincols existe um grande lago. Dizem que Obama não quis ir a pé do Capitólio para a Casa Branca depois de empossado, como fez o Jimmy Carter, porque não resistiria à tentação de caminhar sobre as águas do lago. (Luis Fernando Veríssimo, em sua coluna na Gazeta)

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Morte aos suicidas

A expressão "gostar de sofrer" geralmente é usada de forma depreciativa, como se a pessoa em questão, por fraqueza, tivesse desistido da felicidade, assinando assim seu atestado de burrice. No entanto há pessoas que assinariam de bom grado esse atestado, mas como um atestado de fraqueza ou de orgulho e não de burrice, até porque a burrice, se fosse o caso, permaneceria com ou sem tal assinatura. Aliás, a única coisa que ninguém pode escolher é ser burro, pois isto seria, de saída, uma escolha errada, e para fazer uma escolha errada é preciso ser burro antes mesmo de fazê-la. Portanto, ninguém é burro porque quer, e se isso ajudar a diminuir o preconceito de alguns já me dou por satisfeito.
O que acontece, normalmente, é que se toma pela expressão "gostar de sofrer" a idéia de gostar de ser triste, por exemplo. Mas poderíamos dar muitos outros exemplos: masoquismo, gostar de dar vexame etc., em nenhum dos casos a pessoa gosta de sofrer, pois esta expressão, por si só, é um contra-senso. O fato é que, como (i) cada um tem uma concepção da felicidade, que aliás é algo que por si só não tem sentido, e (ii) o ser humano é um fracasso em matéria de comunicação, de modo que a falta de comunicação me parece ser a causa de todos os males, a concepção de felicidade do outro sempre parece mais burra.
Uma das leis mais ignóbeis, a meu ver, é a que pune a tentativa de suicídio. Pra mim isto só prova a artificialidade desta mesma lei e, com isso, o abismo que há entre o legítimo e o legal, isto é, basicamente, entre o justo da ética e o justo da política. Não espanta que, entre aqueles que fazem as leis, grande parte seja formada por radialistas demagogos e pastores de igreja eleitos democraticamente, em suma: pessoas que, ao invés de manter seus preconceitos limitados pela liberdade de crença e opinião, no nível do direito, querem estipular para todos, no nível do dever, aquilo que só é válido para seu círculo, ainda que estes círculos sejam grandes representantes dos valores de massa. Isto prova ainda que a lei se fundamenta na e se caracteriza pela punição mais do que pelo bem comum. Não fosse assim, daríamos aos suicidas a pena capital e sairiam todos ganhando. Aliás, quer melhor ocasião para a pena capital?
O suicida não é, e não pode ser, na minha opinião, alguém fora de suas capacidades mentais que de repente viu um revólver e resolveu "estourar os miolos", pelo menos não, por assim dizer, o verdadeiro suicida, quer dizer, aquele que mata pelo mesmo motivo que faz os homicidas, estes sim, criminosos: o seu suposto livre-arbítrio, fora disso, tudo o mais será mero acidente, e é ridículo punir alguém por um acidente. Uma tentativa de suicídio, entretanto, não é um acidente, tudo o que temos a fazer é dar ao suicida uma segunda tentativa, de preferência indolor e, no mínimo, uma trégua para o caso de ele não aceitar, já que, com a desistência, ele se redime por isso mesmo de seu suposto crime: é como se o assassino ressuscitasse a vítima e pronto, iam todos passear no parque.
O que quero dizer é que o suicida é uma pessoa tão comum quanto qualquer outra, assim como aquelas que "gostam de sofrer". Aliás, o suicida é aquele cuja felicidade só depende dele, ele é autônomo por excelência, opta pela morte como outros, do alto de sua heteronomia, optam pelo sexo. Mais do que isso, é alguém que escolhe como, quando e onde morrer, além de dar à sua morte e, pelo mesmo ato, à sua vida - tantas vezes medíocre -, a dignidade de um porquê. Muito melhor do que alguém que, um belo dia, tem sua cabeça esmagada por um caminhão.
Voltando aos que "gostam de sofrer", dentre os quais eu sou o primeiro (risos): vivemos hoje uma ditadura da felicidade, é engraçado como qualquer outdoor idiota se importa com a sua felicidade, ainda que seja apenas a felicidade da novela das oito. E como muitos preferem se contentar com esta felicidade a encontrar um mínimo de prazer na tristeza, que será sempre inevitável, vale qualquer coisa pra "ser feliz". Ora, todas as vezes que me senti próximo desta idéia vaga de felicidade, não me senti senão ansioso, inseguro e vulnerável, além do retorno da tristeza se tornar uma ameaça constante, ameaça que, infalivelmente, se realiza, e isto porque eu ainda não conheci a verdadeira felicidade, pois esta se caracteriza, essencialmente, pelo tédio.
De resto, ser feliz é ipso facto largar a felicidade na mão dos outros, e como diria Ibsen: "o homem mais forte é aquele que está mais só". Com efeito, a liberdade é muitas vezes melhor do que a felicidade, pelo menos melhor do que a felicidade da novela das oito. O problema é quando entra em jogo a liberdade da novela das oito, mas aí já é outra história...

domingo, 18 de janeiro de 2009

Autismo

"Não há cura, não sabemos a causa. Há grande expectativa para que se confirme a hipótese de que há um componente genético importante" Estevão Vadasz, psiquiatra e responsável pela Associação de Amigos do Autista (AMA) de São Paulo, em entrevista à Gazeta do Povo.
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"não há um consenso sobre o que sejam verdadeiramente uma psicose infantil ou um autismo infantil" Maria Cristina Kupfer, Educação para o futuro, Psicanálise e educação, 2000.
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"Quem faz o diagnóstico é o psiquiatra infantil. Já o tratamento deve ser feito por uma equipe multidisciplinar. (...) No Brasil há divergência, fora não. Aqui os pais passam por uma via-crúcis, cinco, seis profissionais" Vadasz
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"Um dos principais entraves ao avanço dos estudos sobre a psicose infantil e o autismo está na disputa diagnóstica. A falta de concordância entre profissionais impede, logo de saída, qualquer estudo epidemiológico e dificulta enormemente as trocas científicas, já que os pesquisadores não estão falando do mesmo objeto de pesquisa - o autista do neurologista não é o autista do psicanalista" Kupfer
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"Há 30 anos pensava-se que o autismo era uma doença ou síndrome causada pela baixa qualidade na relação entre as mães e os filhos..." Vadasz
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"uma mãe sustenta para seu bebê o lugar de Outro primordial. Impelida pelo desejo, antecipará em seu bebê uma existência subjetiva... Desenhará com seu olhar, seu gesto, com as palavras, o mapa libidinal que recobrirá o corpo do bebê, cuja carne sumirá para sempre sob a rede que ela lhe tecer. (...) Quando esses atos de reconhecimento recíproco começam a falhar e se perde a sua constante realimentação, vemos surgir, logo por volta de seis meses de idade, os primeiros traços autistas. O bebê não olha para ninguém e evita especialmente o rosto materno... o bebê sentado não fixa a cabeça, que cai para o lado, já que não há por que olhar. Mais tarde, a boca, não erotizada, não recortada pelo trabalho materno de fazer nascer - nisso que é pura carne, pura necessidade - a pulsão oral, estará sempre semi-aberta... a criança exibirá uma baba constante, a deslizar por entre seus lábios moles" Kupfer
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"...Hoje sabemos que se trata de um transtorno biológico do desenvolvimento do sistema neurológico" Vadasz
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"O autismo de Kanner* nasce em estreita conexão com a culpabilização das mães. Em movimento oposto, são desculpabilizadas pela psiquiatria biológica: o problema está na falha dos neurotransmissores, dizem esses teóricos. Independentemente de que isso efetivamente possa ocorrer - embora não se saiba se é o autismo que a provoca ou se é o contrário - o uso que a sociedade faz disso é o seguinte: ao serem desculpabilizadas (e precisam sê-lo, pois efetivamente não têm culpa), são pelo mesmo ato desresponsabilizadas" Kupfer, grifos meus

*"Kanner oscilou, no transcurso de seus textos, entre considerar a dimensão do orgânico na etiologia do autismo - uma síndrome genética - e enfatizar as relações mãe-bebê para explicá-lo. (...) Para um psicanalista, a observação sobre o lugar das mães na montagem do autismo não é nada desprezível. Muitos deles puseram-se a buscar essas relações, mas não parecem ter sido mais felizes que Kanner. Hoje são eles o alvo de ataque das mães, associadas em AMAS por todo o mundo, e que fogem dos psicanalistas como o diabo da cruz" (idem)
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Enfim, fiz este post porque, na minha modesta opinião, a reportagem de Adriana Czelusniak, na Gazeta do Povo de hoje, me pareceu passar uma visão mais ou menos unilateral do tema. Mas podemos ainda acrescentar, a título de conclusão, o que diz Maria Cristina Kupfer no mesmo livro: "Nenhum psicanalista, em sã consciência, pode negar que um bebê seja antes de mais nada um feixe de nervos. E acolherá como bem-vindas todas as experiências que puderem avançar no conhecimento das bases neurológicas de todas as patologias. Um psicanalista acredita, porém, que o corpo de um bebê jamais sairá de sua condição de organismo biológico se não houver um outro ser que o pilote em direção ao mundo humano, que lhe dirija os atos para além dos reflexos e, principalmente, que lhes dê sentido. Assim, de nada adiantará um organismo absolutamente são se não houver quem o introduza no mundo do humano, vale dizer, da linguagem". Finalmente, vale ler o depoimento da própria jornalista que, além de fazer a reportagem para a Gazeta, é também mãe de uma criança com autismo.

sábado, 17 de janeiro de 2009

Feliz ano velho: errata

...acabei confundindo tudo.
Hoje não deslizo mais não,
não sou irônico mais não,
não tenho ritmo mais não.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

E por falar em Paulo Mendes Campos...

Agora, que chegaste à idade avançada de quinze anos, Maria da Graça, eu te dou este livro: Alice no País das Maravilhas.
Este livro é doido, Maria. Isto é: o sentido dele está em ti.
Escuta: se não descobrires um sentido na loucura acabarás louca. Aprende, pois, logo de saída para a grande vida, a ler este livro como um simples manual do sentido evidente de todas as coisas, inclusive as loucas. Aprende isso a teu modo, pois te dou apenas umas poucas chaves entre milhares que abrem as portas da realidade.
A realidade, Maria, é louca.
Nem o papa, ninguém no mundo, pode responder sem pestanejar à pergunta que Alice faz à gatinha: "Fala a verdade, Dinah, já comeste um morcego?"
Não te espantes quando o mundo amanhecer irreconhecível. Para melhor ou pior, isso acontece muitas vezes por ano. "Quem sou eu no mundo?" Essa indagação perplexa é o lugar-comum de cada história de gente. Quantas vezes mais decifrares esta charada, tão entranhada em ti mesma como os teus ossos, mais forte ficarás. Não importa qual seja a resposta; o importante é dar ou inventar uma resposta. Ainda que seja mentira.
A sozinhez (esquece essa palavra que inventei agora sem querer) é inevitável. Foi o que Alice falou no fundo do poço: "Estou tão cansada de estar aqui sozinha!" O importante é que ela conseguiu sair de lá, abrindo a porta. A porta do poço! Só as criaturas humanas (nem mesmo os grandes macacos e os cães amestrados) conseguem abrir uma porta bem fechada, e vice-versa, isto é, fechar uma porta bem aberta.
Somos todos tão bobos, Maria. Praticamos uma ação trivial e temos a presunção petulante de esperar dela grandes conseqüências. Quando Alice comeu o bolo, e não cresceu de tamanho, ficou no maior dos espantos. Apesar de ser isso o que acontece, geralmente, às pessoas que comem bolo.
Maria, há uma sabedoria social ou de bolso; nem toda sabedoria tem de ser grave.
A gente vive errando em relação ao próximo e o jeito é pedir desculpas sete vezes por dia: "Oh, I beg your pardon!" Pois viver é falar de corda em casa de enforcado. Por isso te digo, para a tua sabedoria de bolso: se gostas de gato, experimenta o ponto de vista do rato. Foi o que o rato perguntou à Alice: "Gostarias de gatos se fosses eu?"
Os homens vivem apostando corrida, Maria. Nos escritórios, nos negócios, na política, nacional e internacional, nos clubes, nos bares, nas artes, na literatura, até amigos, até irmãos, até marido e mulher, até namorados, todos vivem apostando corrida. São competições tão confusas, tão cheias de truques, tão desnecessárias, tão fingindo que não é, tão ridículas muitas vezes, por caminhos tão escondidos, que, quando os atletas chegam exaustos a um ponto, costumam perguntar: "A corrida terminou! mas quem ganhou?" É bobice, Maria da Graça, disputar uma corrida se a gente não irá saber quem venceu. Se tiveres de ir a algum lugar, não te preocupe a vaidade fatigante de ser a primeira a chegar. Se chegares sempre aonde quiseres, ganhaste.
Disse o ratinho: "Minha história é longa e triste!" Ouvirás isso milhares de vezes. Como ouvirás a terrível variante: "Minha vida daria um romance". Ora, como todas as vidas vividas até o fim são longas e tristes, e como todas as vidas dariam romances, pois o romance é só o jeito de contar uma vida, foge, polida mas energicamente, dos homens e das mulheres que suspiram e dizem: "Minha vida daria um romance!" Sobretudo dos homens. Uns chatos irremediáveis, Maria.
Os milagres sempre acontecem na vida de cada um e na vida de todos. Mas, ao contrário do que se pensa, os melhores e mais fundos milagres não acontecem de repente, mas devagar, muito devagar. Quero dizer o seguinte: a palavra depressão cairá de moda mais cedo ou mais tarde. Como talvez seja mais tarde, prepara-te para a visita do monstro, e não te desesperes ao triste pensamento de Alice: "Devo estar diminuindo de novo". Em algum lugar há cogumelos que nos fazem crescer novamente.
E escuta esta parábola perfeita: Alice tinha diminuído tanto de tamanho que tomou um camundongo por um hipopótamo. Isso acontece muito, Mariazinha. Mas não sejamos ingênuos, pois o contrário também acontece. E é um outro escritor inglês que nos fala mais ou menos assim: o camundongo que expulsamos ontem passou a ser hoje um terrível rinoceronte. É isso mesmo. A alma da gente é uma máquina complicada que produz durante a vida uma quantidade imensa de camundongos que parecem hipopótamos e de rinocerontes que parecem camundongos. O jeito é rir no caso da primeira confusão e ficar bem disposto para enfrentar o rinoceronte que entrou em nossos domínios disfarçado de camundongo. E como tomar o pequeno por grande e o grande por pequeno é sempre meio cômico, nunca devemos perder o bom humor.
Toda pessoa deve ter três caixas para guardar humor: uma caixa grande para o humor mais ou menos barato que a gente gasta na rua com os outros; uma caixa média para o humor que a gente precisa ter quando está sozinho, para perdoares a ti mesma, para rires de ti mesma; por fim, uma caixinha preciosa, muito escondida, para as grandes ocasiões. Chamo de grandes ocasiões os momentos perigosos em que estamos cheios de dor ou de vaidade, em que sofremos a tentação de achar que fracassamos ou triunfamos, em que nos sentimos umas drogas ou muito bacanas. Cuidado, Maria, com as grandes ocasiões.
Por fim, mais uma palavra de bolso: às vezes uma pessoa se abandona de tal forma ao sofrimento, com uma tal complacência, que tem medo de não poder sair de lá. A dor também tem o seu feitiço, e este se vira contra o enfeitiçado. Por isso Alice, depois de ter chorado um lago, pensava: "Agora serei castigada, afogando-me em minhas próprias lágrimas".
Conclusão: a própria dor deve ter a sua medida: É feio, é imodesto, é vão, é perigoso ultrapassar a fronteira de nossa dor, Maria da Graça.

(Paulo Mendes Campos, Para Maria da Graça, in Para gostar de ler; crônicas, São Paulo, Ática, 1979, v. 4, p. 73-76. Encontrado em Filosofando: introdução à filosofia de Maria Lúcia de Arruda Aranha e Maria Helena Pires Martins, São Paulo: Moderna, 1993, p. 295-296)

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Feliz ano velho

Hoje amanheceu muito frio em Curitiba. E no meu rosto surgiram dois grandes vincos embaixo dos olhos, mas não chorei. Quando acordei minha mãe desmanchava o pinheirinho e era como se desmontasse um cenário no qual se passou o natal e o ano novo e agora era inútil. Às vezes tenho a impressão de que, em todo lugar que eu vou, há alguém desmanchando o cenário e saindo de cena, cheio de coisas embaixo do braço, uma sensação de quem se enganou de endereço ou chegou atrasado. Li no jornal que Marcelo Rubens Paiva lançou "A segunda vez que te conheci", espécie de resposta a "O amor acaba" de Paulo Mendes Campos. Deu vontade de ler os dois. Seria bom, em tardes frias como essa, na companhia de Gardel e Jorge Drexler. Ah! se eu tivesse a oportunidade, tocava no ombro de Drummond e dizia que, de minha parte, eu nunca fui brasileiro, nunca ponteei viola, meu ritmo nem sei se já tive, sei que brasileiro não sou, sou argentino, ucraniano, russo, brasileiro é que nunca fui, o samba é uma música estrangeira que eu gostei, mas no momento o tango argentino ou a milonga paraguaia me vão melhor, até bem melhor que o blues. Não, brasileiro é um povo alegre, e eu sou apenas feliz. Mas é verdade, há uma hora em que os bares se fecham, e saímos à toa pelas ruas escuras e há sempre um rio que nos chama lá embaixo. Não sei, não sei se eu sou feliz, mas alegre pode crer que não. É que eu tô sozinho há tanto tempo que eu me esqueci o que é verdade e o que é mentira em volta de mim. Aí parece que eu preciso me desculpar, pedir desculpa a todos por não ser feliz, por não conhecer a verdadeira felicidade. "Nos tornamos piegas quando a tristeza é inevitável", diz o personagem de Paiva, sei como é. E nesta época Curitiba está deserta, mas, sinceramente, acho que nem curitibano eu sou mais. "Ser" alguma coisa não é tão fácil assim, exige a sensação de estar no mundo, e isso é difícil. Talvez o amor seja quando alguém desculpa a outra pessoa por não conhecer a verdadeira felicidade, então, quando a pessoa se sente perdoada, ela se apaixona, quem sabe aí ela tenha a sensação de estar no mundo, só então se poderá "ser" alguma coisa, só depois que alguém te perdoa por existir. Antes disso, existimos clandestinamente, nos permitimos beber, falar besteira, pois ainda não somos nada, porque enquanto ninguém nos perdoar ainda seremos vazios, até que alguém nos escolha, nos olhe bem nos olhos e diga: você "é" importante pra mim, aí você deixa de ser um fantasma e doravante poderá "ser" o que quiser, poderá freqüentar o mundo livremente, quem sabe então se possa ser curitibano e até brasileiro, talvez então se possa, irônico, deslizar.