quinta-feira, 24 de julho de 2008

O silêncio dos intelectuais

Você viu? Você viu como ela esticou o pescoço pro teu lado? Assim, toda delicada, feminina, quis talvez desmaiar nos teus braços, mas pelo jeito olhou pros teus músculos contraídos, tua fraqueza ridícula, e preferiu não cair, pois você a derrubaria no chão, você soltaria seu corpo debilmente, como quem deixa escorrer um fio de baba. Você não foi homem, estremeceu, deixou cair os copos no chão, quebrou tudo na frente dela, sujou a roupa dela, e não foi nem capaz de lhe emprestar o teu casaco, pra que ela não sentisse tanto frio ao toque do vento na blusa molhada. Não, meu caro, você foi fraco, fez tudo errado, há tempos você faz tudo errado, o coração da gente não se pode dar, é um só, e é de vidro também, como os copos que você quebrou. Você lembra? Você lembra quando ela disse: sinto um vazio aqui dentro? Você não podia ter dito: eu também. Não, você devia ter virado o rosto por um momento e fitado o pôr-do-sol, em silêncio, ela ia entender, ela ia entender que você também se sente só, e que tua força maior vem desta solidão de fitar o sol, como quem olha olhos nos olhos de Deus, com vago remorso. Mas você vacilou, você olhou pro chão, e no chão só tinha os copos que você mesmo quebrou e que você olhava com arrependimento, como o assassino olha pra vítima, você se entregou. Ela precisava de você, mas não como cúmplice, ela não queria o teu cadáver, teu esqueleto de vidro, ela só precisava de você pra segurar-lhe o cabelo enquanto ela coloca o brinco, mas ela sabia que você acabaria machucando o pescoço dela, ou banharia a orelha dela em sangue com essas tuas mãos de gorila, você ainda seria capaz de quebrar as taças também com essas mãos e elas nem sangrariam, tão calejadas, tão cheias de veias azuis, porém mortas, como se o sangue estivesse todo no teu rosto na hora em que ela perguntou: em que está pensando? Você pensava nos crimes, no doce que você roubou da criança, lembra? Você deixou a criança chorando na beira da praia, deixou que uma criança fosse maior que você, porque você não entende nada de ética, nem de estética. Quando ela lhe pediu pra acender o cigarro, você lhe queimou os cílios, ainda bem que ela tinha os olhos rasos d'água e apagou a chama num piscar de olhos. Sim, a chama se apagou, você deve parar de ouvir vozes e olhar apenas o que descansa embaixo do sol. Seja um bom animal da próxima vez, se houver próxima vez, não posso lhe dizer mais nada, não me pergunte nada, seja um bom garoto e não derrube os copos, lembre-se: ela não te quer como cúmplice, mas como amigo, um bom amigo, um amigo forte, capaz de viver sem ela, sem mulher alguma se for preciso, mas que não tenha medo de digladiar com Deus ou mesmo de apenas tocar-lhe o ombro, se ela precisar, só se ela precisar.

quarta-feira, 23 de julho de 2008

O mundo é grande

Entrelinhas

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Antigamente eu achava que ficava em silêncio por timidez.
Hoje eu sei que é apenas por não ter o que dizer.
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Antigamente eu achava que sofria de insônia.
Hoje eu sei que é apenas medo
de dormir e não acordar.
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Antigamente eu achava que tinha dores musculares.
Hoje eu sei que é meu próprio anjo da guarda
que me atinge com um taco de beisebol.

(Otávio)

PS: Insônia mata? então talvez eu morra logo, mas já troquei meu travesseiro por um que preenche o espaço do ombro até a cabeça, então talvez eu não morra. Acontece que esta noite eu tive uns três pequenos sonos isolados, dormia uma meia-hora e ficava com os olhos abertos no escuro mais umas três horas, de um lado pro outro, os pés pra fora por causa do calor, sem falar que eu estava muito, muito cansado, então de manhãzinha começou a chover e eu dormi algumas horas seguidas, quando acordei parecia que tinha saído de uma maratona ou de uma luta (e o pior é que eu perdi, eu perco todas). E assim de post scriptum em post scriptum eu vou fazendo meu diário, porque no fundo eu sou piegas mesmo, mas acho que com este travesseiro e menos café tudo se ajeita.

segunda-feira, 21 de julho de 2008

Aula de Matemática

p/ Dalton Trevisan, o velho vampiro de ctba


A aluna reclama do professor de matemática:
- Eu não consigo prestar atenção nas aulas de matemática, o professor tem uma cicatriz aqui no pescoço, aí quando ele vai sem gola alta parece que aquilo tá vivo. Dá até um troço.

(Otávio, no ônibus)

De Schopenhauer aos Anônimos

"Rousseau já disse: 'todo homem honesto deve assinar os livros que publica', e proposições afirmativas gerais podem ser invertidas por contraposição. A afirm..." [opa, espera aí, entendeu? Acho que ele está dizendo que todo aquele que assina deve, também, ser honesto, vamos em frente:] "A afirmação vale mais ainda para os escritos polêmicos [...] A liberdade de imprensa que foi finalmente alcançada na Alemanha, para em seguida sofrer o abuso mais indigno, deveria pelo menos ser condicionada por uma proibição de todo e qualquer anonimato e do uso de pseudônimos. [...] Usar o anonimato para atacar pessoas que não escreveram anonimamente é evidentemente desonroso. Um crítico anônimo é um sujeito que não quer assumir o que diz ou o que deixa de dizer ao mundo acerca dos outros e dos seus trabalhos, por isso não assina. [...] Não há mentira que seja tão insolente a ponto de impedir um crítico anônimo de usá-la: de fato, ele não é responsável. [...] Por isso, a cada vez que se faz referência a um crítico anônimo, mesmo que seja de passagem e sem reprovações, deveriam ser empregados epítetos como: 'O canalha covarde e anônimo diz' ou 'O patife anônimo disfarçado diz naquele jornal', entre outros. Esse é, de fato, o tom razoável e apropriado para falar de tais camaradas [...] uma pessoa assim é ipso facto um fora-da-lei. Ele é o Sr. Ninguém, e qualquer um tem a liberdade de explicar que o Mr. Nobody é um patife. Por isso, especialmente nas respostas às críticas, os críticos anônimos devem ser tratados com termos como 'patife' e 'canalha', em vez de recorrer, como fazem por covardia alguns autores contaminados pela corja, a tratamentos como 'o prezado Senhor Crítico'. [...] E quando alguém conseguir o mérito de arrancar o capuz de um destes camaradas, depois de ele ter sido posto na berlinda, e arrastá-lo pelas orelhas na frente de todos, tal criatura notívaga despertará grande júbilo à luz do dia. [...] Uma impertinência especialmente ridícula da parte de tais críticos anônimos é o fato de eles, como os reis, falarem usando o 'nós', quando deveriam usar não só o singular, mas até o diminutivo..." [...]
(SCHOPENHAUER, A. A arte de escrever. Porto Alegre: L&PM, 2006)

- Garçon, um Schop! Estúpido!

domingo, 20 de julho de 2008

Descartes

Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação,
Não noutra alma.
Só em Deus - ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis.
Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
Porque os corpos se entendem, mas as almas não.
Manuel Bandeira

"...nada sou, pois, falando precisamente, senão uma coisa que pensa, isto é, um espírito, um entendimento ou uma razão (...) Eu não sou essa reunião de membros que se chama o corpo humano, não sou um ar tênue e penetrante, disseminado por todos esses membros; não sou um vento, um sopro, um vapor, nem algo que posso fingir e imaginar, posto que supus que tudo isso não era nada..." (Descartes, Meditações)

Gassendi fez a seguinte objeção:

"Dizei-me, eu vos peço, ó alma, ou o que quer que sejais, corrigistes até aqui este pensamento pelo qual vos imaginais ser algo semelhante ao vento ou a qualquer outro corpo desta natureza, espalhado em todas as partes de vosso corpo? Certamente não..."

Descartes respondeu o seguinte:

"Começais por uma figura de retórica bastante agradável que se chama prosopopéia, a me interrogar, não mais como um homem inteiro, mas como uma alma separada do corpo; (...) Dizei-me, portanto, suplico-vos, ó carne, ou quem quer que sejais, e qualquer que seja o nome pelo qual desejais ser chamado, tendes tão pouco comércio com o espírito que não pudestes notar a passagem em que corrigi esta imaginação do vulgo pela qual fingimos que a coisa que pensa é semelhante ao vento ou a algum outro corpo desta espécie?"

E mais adiante...

"o que aqui alegais, ó boníssima carne, não me parece tanto objeções quanto algumas murmurações que não têm necessidade de réplica"

E ainda...

"E não vejo, ó carne, sobre qual argumento vos fundais para assegurar com tanta certeza que um cão discerne e julga da mesma maneira do que nós, a não ser que, vendo que é também composto de carne, vós vos persuadais de que as mesmas coisas que se acham em vós encontram-se também nele"

Dercy Gonçalves morreu



Como disse uma amiga:

droga isso quer dizer que não somos imortais

sábado, 19 de julho de 2008

Poema engajado nº3

how many times can a man turn his head,
and pretend that he just doesn't see?
Bob Dylan

No século XXI
Depois do Holocausto
Da bomba atômica
Das pequenas misérias
de cada um
E da mulher leprosa
Que amamenta sangue
Chega a ser ridículo
Acreditar em Deus

sexta-feira, 18 de julho de 2008

Vamos comer Caetano

não tenho inveja da maternidade
nem da lactação
não tenho inveja da adiposidade
nem da menstruação


só tenho inveja da longevidade
e dos orgasmos múltiplos
e dos orgasmos múltiplos

eu sou homem...
(homem - caetano veloso)

quarta-feira, 16 de julho de 2008

quarta-feira, 9 de julho de 2008

quinta-feira, 10 de julho de 2008, 1:30 da manhã

Excursion into philosophy, E. Hopper
"En un soliloquio, 'yo' tiene sentido en la medida en que está presente el 'otro' como un interlocutor possible, en la memoria, espectativa o imaginación de quien habla. Un autor, en soledad, puede escribir 'yo' con sentido, porque tiene en mente algúno destinatario, real o ficticio; y en la íntima meditación puedo llamarme 'yo' cuando me embarco en algún diálogo ficticio, con mi 'alma', mi 'conciencia' o mi 'Dios'." L. Villoro
 
Sou uma criança. Basta olhar nos meus olhos e ver esta angústia bondosa que só as crianças têm, esta angústia calma de quem jamais mataria a menos que lhe mandassem, a menos que lhe pedissem. Lembro-me que quando era pequeno, perguntavam: você quer este ou este? E eu nada dizia. Eu era - e sou - uma criança, muito desesperada, no fundo de uma sala de aula. 22! Presente. Presente? Talvez. No fundo. Abandonada. Há apenas o som seco da bola explodindo na quadra de vôlei, a torcida distante, ou só o eco, o som agudo dos tênis novos na cancha de futsal, comemorações surdas. É uma escola velha, no meio do nada, a estrada de chão, um predinho no meio do deserto, uma faixa de tinta a meia altura. O quadro, o quadro nunca foi tão negro. Um vidro quebrado, todos foram embora. Há alguns anos. Há apenas a poeira que um carro levanta. Há alguns anos, todos entraram nos carros de seus pais e se foram, cresceram, pegaram diploma, se casaram. Eu fiquei, no fundo da sala: uma criança. Sozinha. Esquecida. Esperando as tropas americanas.

quarta-feira, 2 de julho de 2008

QUADERNA

Depois de encontrar uma galera bacana - dentre eles o Pozzo e a Iriene, os quais aproveito para saudar - e beber umas quatro cervejas na apresentação do porão loquax no wonka bar, um poema do paranaense rodrigo garcia lopes, recitado pelo próprio, me marcou como poucos poemas conseguem marcar: Quaderna, que por sorte achei publicado lá na Revista Zunái. Salve! Salve!

Quatro pontos cardeais
Quatro estações do ano
Quatro cantos num cubo
Quatro laterais de um campo
Quatro trevos que descubro
Quatro lados da moldura
Quatro elementos na natura
Quatro pontas de uma estrela
Quatro balas de alcaçuz
Quatro pontas num compasso
Quatro horas da manhã
Quatro rodas num carro
Quatro sementes de romã
Quatro sinais da cruz
Quatro mundos por segundo
Quatro quartos numa casa
Quatro pernas de uma mesa
Quatro pessoas numa mesma
Quatro pássaros sem asas
Quatro brilhos nesta espuma

Mas só uma vida, só uma.

Rodrigo Garcia Lopes