sábado, 30 de junho de 2007

sábado, 23 de junho de 2007

O uniforme

Terminado o expediente, o indivíduo sai da loja em que trabalha como vendedor. Em sua camisa de uniforme está estampado: "Posso ajudá-lo?". Anda duas quadras e uma senhora se aproxima:
- Ô meu filho, eu ando com uns calorão, me dá umas tremedeira nas perna às vezes, que que eu faço, filho de Deus?
- Bom, acho que a senhora deveria procurar um médico. – e continua andando, mas quando pára no sinaleiro seguinte, um sujeito boa-pinta chega estapeando suas costas:
- Pó, brother, mulher é tudo igual mesmo. Não, olha pra mim, me diz: tô barrigudo? Fala sério meu, que que o negão tem que eu não tenho?
- Bem, na verdade eu nem conheço esse negão. – e prossegue absorto.
Já no ponto de ônibus, sente uma mão nas suas costas, em movimentos lentos e leves:
- “Po-sso-a-ju-dá”, que que é isso aqui? Hífen! “-lo” Opa! Com certeza! Olá, irmãozinho, poderia fazer o obséquio de ajudar um cego com a rua?
...Feito o favor, volta para o ponto quando alguém toca seu ombro e ele se volta furioso:
- Puta que pariu! Chega! Não vou mais ajudar ninguém, será que não dá pra ver que é um uniforme?
- Que isso, Márcio? Sou eu, Aninha.
(Otávio)

terça-feira, 19 de junho de 2007

Variações do mesmo tema

A questão do ateísmo implica, pelo menos, três outras: (i) existência de Deus; (ii) fé e (iii) sentido da vida.
Quando alguém se diz ateu, não está dizendo que Deus não existe mas, no máximo, que não acredita que Deus exista. Pois é diferente dizer "a Terra gira em torno do sol" de dizer "Copérnico crê que a Terra gira em torno do sol”. Porém, ao contrário do movimento da Terra, não se pode provar que Deus existe nem que não existe. Alguns filósofos da ciência afirmam que nem mesmo o movimento da Terra nem qualquer coisa se pode provar. Para provar algo é preciso argumentos e princípios. A Teologia e a ciência compartilham dos primeiros. Os argumentos da religião são, por exemplo, o surgimento da vida e manutenção desta em meio a zilhões de partículas, vácuo, energia e outros jargões da química. Mas a religião carece de princípios sólidos, assim esses mesmos argumentos podem ser usados igualmente pelos ateus.
“Mas se Deus é as flores e as árvores / E os montes e o luar e o sol, / Para que lhe chamo eu Deus? / Chamo-lhe flores e árvores...” (F. Pessoa: Alberto Caeiro)
E mais: “Sempre que olho para as cousas e penso no que os homens pensam delas, / Rio como um regato que soa fresco numa pedra. / Porque o único sentido oculto das cousas / É elas não terem sentido oculto nenhum.” (idem)
Ou seja, independente de Deus existir ou não, é o modo como o homem vê as coisas, subordinadas ou não a um princípio – oculto – supremo, que distingue um ateu de um fiel. Em suma, enquanto a ciência tem princípio e argumentos, a Teologia só tem argumentos. E mesmo que tivesse princípio, como um milagre por exemplo, nem mesmo o estatuto de ciência, de que a Teologia se arroga, lhe traria um critério de certeza. Afinal, alguém pode dizer um dia que a Terra não gira em torno do Sol nem o contrário, mas uma terceira coisa. A religião tem, entretanto, uma motivação interna. Neste sentido podemos falar em princípios psicológicos ou sociológicos da religião. No entanto, se alguém segue a religião, cristã pelo menos, admite, ou pelo menos deveria admitir, uma motivação externa, isto é, Deus, que no caso deveria existir.
A pessoa que tem fé não está preocupada com princípio, argumento, motivação interna ou coisa assim, ela SENTE Deus. Portanto, ela não acredita tanto que Deus – externo – existe, mas antes na sensação – interna – de que Ele existe, não há causalidade. Até porque, se houvesse, não seria fé, mas conhecimento, como 2 e 2 são 4. O que caracteriza a fé é justamente o fato de ser absurda. Não obstante, isso é bom ou ruim?
o elogio da fé muitas vezes parte de ateus, sob a alcunha de otimismo. Onze em cada dez pessoas acham bom ser otimista. Doze erram. Não seria o pessimismo uma forma de otimismo? Antes uma dura verdade que uma doce ilusão. Ou é melhor ser louco e feliz? Não, pois a lucidez subsiste sem felicidade, mas a felicidade não subsiste sem lucidez (o contentamento sim). A lucidez deve vir antes, pois, como causa da felicidade. Suponhamos o contrario: se a felicidade vier antes, por meio da fe ou da loucura, e alucidez depois. A afirmação “sou feliz” seria destituída de sentido, pois um louco pode bem ser infeliz e falar o oposto, mais do que isso, falar palavras sem sentido. É o que acontece à palavra “Deus”. É talvez hiperbólico e “de má fé” (sem trocadilho) comparar a fé à loucura, mas ambas sugerem incoerência, ilusão. A diferença objetiva é dada pela neurologia mas, em casos subjetivos, a diferença da fé é que é aceita por 99% do planeta, enquanto a “insanidade moral” ou psicológica se caracteriza por casos isolados (eis porque, por tanto tempo, o homossexualismo foi considerado distúrbio psicológico). Dois loucos não só não entendem os sãos como não se entendem entre si, ao passo que dois crentes se entendem mutuamente, apesar de o ateu não entende-los.
Mas como fica o ateu? Não fica? Finge participar de uma religião, mesmo que não encontre nela um sentido para a vida, a fim de se inserir à sociedade? Isola-se como minoria e faz passeatas? Porque ser ateu é quase como ser gay, pois o gay não tenta “converter” o hétero ou “se converter” em heterossexual, e sim procura outro gay, assim, um ateu procuraria outro ateu. Ou entende a fé como algo dinâmico, que se pode perder e adquirir, possibilitando um ateísmo militante? Ou ainda pensa o ateísmo, bem como a religião, como algo genético? Uma opinião pessimista pois, mesmo sabendo que “nunca vou ter fé”, como diria Cazuza, sabe-se que certas pessoas nunca vão duvidar. Assim se criaria um conflito inevitável, levando ao massacre ou à marginalização dos ateus (bem feito, diriam os crentes).
Enfim, sem ceder ao agnosticismo, a solução talvez fosse um ateísmo heurístico, pressupondo para tanto um ateísmo natural.

(Otávio)

sexta-feira, 15 de junho de 2007

Entrevista com o Vampiro (contista, 82)

O entrevistado é um geminiano, de 14 de junho, que não gosta de ceder entrevistas, por Fernando alguma coisa, há uns 30 anos atrás. Transcrevo aqui, obedecendo à concisão, uma paráfrase:

...um homem magro, cabelos grisalhos, óculos pequenos, aparentando uns cinqüenta e poucos anos: Dalton Trevisan.
...Não era entrevista, e sim uma conversa.
...Dalton Trevisan acorda cedo, escreve pela manhã num pequeno escritório no jardim de sua casa. Esse escritório é conhecido em Curitiba como a 'cabana do Vampiro'.
...Passei a fazer perguntas sobre o começo de sua carreira. Dalton foi logo cortando:
- Não gosto de falar de mim. Coelho Neto e Octávio de Faria falaram muito deles próprios e se esqueceram da obra. Hoje ninguém mais os conhece. O autor não vale o personagem, só a obra interessa. O conto é sempre melhor que o contista.
...Coloca Rubem Fonseca e Clarice Lispector muito à sua frente...
- Se você quer ser mesmo um escritor, não pode deixar de ler esta trilogia do Machadinho. E aponta na estante Dom Casmurro, Quincas Borba e Memórias Póstumas de Brás Cubas.
Dalton sustenta que os dois estilistas da nossa língua são Machado de Assis e o padre João Ferreira d'Almeida, o tradutor da Bíblia, 'o único livro que a gente não pode deixar de ler'.
Recomendou também os russos Tolstoi, Tchekov, Dostoievski. Destacou a importância de Cartas a um jovem poeta, de Rilke.
...Dalton cita Hemingway: 'Quanto mais infeliz na infância, melhor será o escritor' ... Kafka, Fassbinder e até Woody Allen. 'Manhattan é uma obra de arte' - os filmes de Fellini, Bergman... acredita na importância da discussão com os amigos...
- Para um bom escritor são importantes sobretudo as paixões desgraçadas, as dores de cotovelo, as frustrações, as crises de hemorróidas.
...Justifica-se da crítica de ser pessimista na sua obra, mas não acredita numa boa história formada pçor alegrias do começo ao fim: 'A realidade não é assim'.
- 'Lembra-se daquela surda-muda com quem você saiu e que só gemia?' - perguntou um amigo saudoso...
...Dalton destacou a importância das contradições religiosas na vida de um escritor.
- Se quer ser um, deve acreditar em demÔnio, deve ser confuso com as crendices religiosas...

sexta-feira, 1 de junho de 2007

Jefferson e Wellington



Minha primeira crônica pra valer, feita numa oficina no solar do rosário, ministrada pela escritora Isabel Furini:

Jefferson já tomara seu café, odiava caviar, mas fazia questão de comer logo de manhã, pra passar mal o resto do dia. Saiu à janela, olhou a rua, vazia, olhou o céu, cinzento. Um caminhão vinha lentamente, um lixeiro encharcado da chuva se virava para pegar lixo por lixo e jogar no caminhão, era Wellington, sem seus companheiros, só ele e o motorista.

Jefferson contemplava Wellington, que tropeçou e caiu, em cima justamente de seu lixo, cheio de latinhas de caviar, que cortaram o dedão direito da mão e o rosto do lixeiro que, por sinal, nem percebeu o sangue escorrer, em meio a chuva, suor e sujeira.

Jefferson percebeu e, movido por um sentimento estranho, correu levantá-lo, sua assistência foi pouca, tudo que fez foi dizer:

- Está tudo bem? Então corre que o caminhão está indo embora!

O lixeiro odiava aquele bairro nobre, uma vez por mês se cortava naquelas latinhas nojentas.

Aquele episódio foi o suficiente para Jefferson passar o resto do dia na suposta boemia de afogar-se em lembranças, bebendo seu whisky francês. Pensou em toda aquela sua vidinha de trinta anos jogados fora, na qual tudo que soube fazer foi aquilo que os outros já sabiam que faria, seguir as regras da etiqueta e das boas maneiras e comer caviar.

Otávio, em 2002