Caracteriza-se [a tortura em caso de violência sexual] como os atos de natureza sexual cometidos contra uma pessoa sem seu consentimento. Abrange tanto a violação física do corpo humano – a penetração vaginal, anal ou oral, com partes do corpo do agressor ou com objetos – como os atos que não imponham penetração ou sequer contato físico, como o desnudamento forçado e a revista íntima. Estaria aí contemplado também o uso de animais nas genitálias, como atestam relatos prestados à CNV.
Relatório final da Comissão Nacional da Verdade,
Volume I, Parte III, Capítulo 7, p. 286,
disponível aqui.
Estou lendo "Cartas da prisão, 1969 a 1973", de Frei Betto (Ed. Agir, 2008), que reúne cartas escritas pelo autor durante a ditadura militar brasileira, de dentro dos presídios nos quais ficou. De maneira fragmentada, como é de se esperar deste estilo de texto, as cartas registram, entre outras coisas, a atuação de Paulo Evaristo Arns como arcebispo de São Paulo, na defesa dos direitos humanos, que acabou levando à organização do livro "Brasil: nunca mais" (Ed. Vozes, 1985). Confirmam também, por exemplo, relatos de outro dominicano, o Frei Tito, registrados no filme Brazil: a report on torture. Segue então uma pequena amostra das linhas escritas por Frei Betto:
"Hoje é domingo, chuvoso e triste. Cinquenta presos se acomodam como podem pela cela. Muitos dormem no chão, sobre colchões; não há mais espaços para camas. O silêncio reflete o clima úmido desse dia cinza. Não é um silêncio de calma, de paz interior. É quase uma sufocação. Tantos juntos e poucos falam. Alguns talvez gostassem de gritar bem alto. Mas engolem esse desejo e aguardam. O quê? Não sei, ninguém sabe. Na prisão sempre se aguarda. É como a plataforma de uma estação sem trens e trilhos.
"É um silêncio triste, de alguém que, sentindo-se provocado, resiste, acumula forças para uma investida posterior. Sentimos nossa impotência. Nada a fazer, ninguém pode ajudar. Não é fossa, porque não chegamos ao desânimo. Nem ódio, pois não há desespero. Talvez raiva, uma raiva muda, paciente, diante desse labirinto do absurdo que se nos apresenta.
"(...) Ele estava bem, alegre, tranquilo, recuperado do que havia sofrido no DEOPS. Bem como todos nós, livres da fase de interrogatórios. Pouco implicado, aguardava o momento de o colocarem em liberdade. Mas veio o DOI-CODI e o levou. Isso há pouco mais de uma semana. Por quê? Ninguém soube responder, nem ele mesmo na hora de sair. Esperávamos a sua volta para o dia seguinte. Não voltou. Passaram-se os dias e ele foi ficando. Ficando naquele lugar que os próprios militares chamam de 'sucursal do inferno'.
"Hoje, soubemos que frei Tito de Alencar Lima 'tentou suicídio' no DOI-CODI... Levado ao Hospital Militar, recebeu transfusões de sangue, mas continua incomunicável. Ninguém consegue visitá-lo, nem ao menos saber o que se passa exatamente com ele. O núncio apostólico, dom Umberto Mozzoni, que nos visitou ontem, tentou vê-lo e foi barrado.
"Por isso estamos em silêncio. Amanhã o mesmo pode ocorrer com qualquer um de nós. Não temos nenhuma proteção ou garantia. Como judeus e comunistas condenados pelo nazismo. Os tempos mudam, a maldade perdura, a opressão recebe novos nomes e novas formas. Nosso silêncio é o mesmo de Maria diante de seu Filho." (Carta a Christina, 22/fev/1970)
*DEOPS: Departamento Estadual de Ordem Política e Social.
**DOI-CODI: Destacamento de Operações e Informações - Centro de Operações de Defesa Interna
*** Frei Tito morreu em 1974, no exílio. Mais a respeito, aqui.
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