quarta-feira, 2 de abril de 2014

O golpe à distância

"As mudanças no Brasil causaram tamanha ansiedade em meus companheiros que muitos deles tiveram de ser acalmados com medicamentos e outros não o foram nem depois de medicados. Quase todos eram casados, com muitos dependentes, viviam de modestos salários ou dos proventos de escassas aposentadorias. Viajando, tinham deixado as famílias aos cuidados do partido ou de sindicatos cujos dirigentes eram comunistas. Com o partido na clandestinidade e os sindicatos inoperantes ou sob intervenção, temiam, com razão, pelo bem-estar dos seus. Alguns pediram para voltar. Os funcionários do PCUS que atuavam no instituto não consentiram: ainda que não fossem identificados pelo plantão policial dos aeroportos - e o seriam, lá estavam seus nomes e fotografias -, sempre acabariam na prisão, tão ou mais imobilizados do que em liberdade num país longínquo. Foi então que se persuadiram da imprudência dos camaradas do Rio de Janeiro, tirando as passagens para a URSS - uma ideia, quem sabe, produzida pelo mesmo cérebro que concebera as fichas cadastrais.
"E estas, que fim teriam levado? Em que mãos estariam nossos nomes, endereços, telefones e o declarado grau de dedicação ao Partido?
Brizola, que apoia Jango (dir.) em 61 e, como ele, exila-se em 64



Não podíamos enviar cartas aos familiares, sob pena de comprometê-los, e não era crível que eles se atrevessem a escrevê-las, postando-as para Moscou. Telefone nem pensar. Nos anos sessenta, uma chamada da União Soviética para o Brasil demandava uma espera de dez ou mais horas, sem a certeza de que a ligação seria completada. A impossibilidade de comunicação fez com que, para muitos, a ansiedade se convertesse em desespero, e as notícias que recebíamos em nada contribuíam para minorá-lo, alternando de tal modo boas e más perspectivas que já ninguém sabia o que pensar. Dizia-se que Leonel Brizola ia reeditar a Legalidade no Rio Grande, em seguida a agência Prensa Latina divulgava que, em Recife, o dirigente comunista Gregório Bezerra fora preso e arrastado pelas ruas; a imprensa de Moscou aludia a focos guerrilheiros que se disseminavam, resistindo à mudança, e logo nos abalava a informação de que a polícia apreendera uma caderneta de Prestes com endereços e telefones, daí resultando a prisão de membros do Comitê Central.
"Dias depois do Golpe chegou a Moscou um médico que fugira do Brasil, e os funcionários o conduziram ao alojamento para conversar conosco. Ele garantiu que a contravolta era iminente, mas ninguém acreditou. Se a conjuntura era favorável, porque tratara de raspar-se, ao invés de ajudar os companheiros que agora se esfalfavam na clandestinidade? Qualquer esperança que tivéssemos deixou de existir quando soubemos que Brizola seguira os passos do cunhado e também se exilara.
"Ainda em abril [de 1964] a direção do instituto anunciou providências para restabelecer o contato com as famílias. As cartas seriam remetidas ao Brasil na mala diplomática e postadas no correio brasileiro pelo pessoal da Embaixada Soviética, com novos envelopes. As minhas nunca chegaram. Como no filme de Gabriele Salvatores, Mediterrâneo, amarelaram na gaveta de algum Sargento Lo Russo. (...)"

Sérgio Faraco, "O golpe à distância", em Lágrimas na Chuva: uma aventura na URSS. Porto Alegre: L&PM, 2011, p. 34-36.

Foto tirada no Museu da República, Rio de Janeiro (exposição A Res Publica).

A primeira edição do livro de Faraco é de 2002, ano de que data a seguinte introdução:

"Eu jamais conseguira escrever sobre o tempo em que vivi em Moscou. Pouco depois da volta ao Brasil, em 1965, tentei fazê-lo e o trabalho não prosperou, talvez porque minhas emoções ainda estivessem muito cruas e desordenadas. No mesmo ano fui preso em Porto Alegre pela Interpol. Enquanto estive recolhido à antiga sede dessa polícia, na Praça do Portão, os agentes forçaram a porta do meu apartamento no Hotel Carraro e apreenderam todos os meus papéis: cartas, fotografias, e parte do relato que, bem ou mal, eu começara a desenvolver. Usaram-no para me interrogar e aquelas páginas, para mim, tornaram-se pouco menos que malditas.
"Mais tarde, em Alegrete, publiquei meus primeiros contos. Meu tio, o médico Eduardo Faraco - que foi reitor da UFRGS -, mostrou-os a Erico Verissimo, que em seguida me escreveu, convidando-me a visitá-lo em Porto Alegre. Eu o fiz. Ele me perguntou se não pensava escrever sobre minha estada na União Soviética. Respondi que, de fato, tinha essa intenção, embora minha experiência não fosse edificante. Ele ficou pensativo, depois disse que, se era assim, talvez fosse ainda menos edificante narrá-la enquanto vivíamos, no Brasil, sob uma ditadura militar. Ele tinha razão.
"Dos anos setenta aos noventa não pude voltar àquele passado, era a época da minha ficção, mas ele continuava a palpitar, fazendo-se lembrar a cada instante como um outro corpo dentro do meu corpo. Tinha eu o direito de matá-lo? Ou de permitir que morresse com minha morte?
"No filme de Ridley Scott, Blade Runner, o androide Roy Batty, na agonia da morte, evoca sua atuação em remotas paragens do Universo: 'Eu vi coisas que vocês nunca acreditariam. Naves de ataque em chamas perto da borda de Orion. Vi a luz do farol cintilar no escuro na Comporta Tannhäuser. Todos esses momentos se perderão no tempo como lágrimas na chuva'.
"Vi menos, mas vi, e aquilo que vi, num quitalejo de angústias terrestres, há de se perder no tempo pelos meus defeitos de escritor e não por ter deixado de narrá-lo. O relato, aqui, começa na viagem de ida e termina na viagem de volta. Mas a história que, durante tantos anos, tive de sufocar como a um grito, essa história não termina aqui."

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