sábado, 31 de janeiro de 2009

Para Chico Buarque

Eu bem que tentei
Tentei chegar do nada
Também nada perguntar
Mas eu só tinha essa aguardente
Tão amarga de tragar

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Entrevista com Sam Mendes

O vazio parece ser um tema comum a sua obra, desde Beleza Americana, não é? É por isso que a crítica chama seu cinema de existencialista?
Existencialista é um adjetivo que pode ter muitos significados. Eu não sei se o que faço é existencialismo. Talvez Soldado Anônimo o fosse. Aquele filme era (Albert) Camus. Não é por acaso que um personagem aparece lendo O Estrangeiro, de Camus. Se existe uma questão constante no que eu filmo, é o fato de sempre haver uma pessoa em crise, que está perdida, sem algo que a guie. Assim eram Kevin Spacey em Beleza Americana e Tom Hanks em Estrada para Perdição. Como artista, é difícil conceituar as raízes daquilo que buscamos. Veja, eu amei O Lutador, um filme simples, emocionante, que traz um ator no melhor de si. Se um crítico me pedisse para explicar o que me atrai nessa simplicidade, eu não saberia dizer.

Fonte: Gazeta do Povo (Caderno G), 28 de janeiro de 2009.

P.S.: Quem é Sam Mendes?

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

posse de Obama

No "mall" que separa o Capitólio do memorial ao Lincols existe um grande lago. Dizem que Obama não quis ir a pé do Capitólio para a Casa Branca depois de empossado, como fez o Jimmy Carter, porque não resistiria à tentação de caminhar sobre as águas do lago. (Luis Fernando Veríssimo, em sua coluna na Gazeta)

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Morte aos suicidas

A expressão "gostar de sofrer" geralmente é usada de forma depreciativa, como se a pessoa em questão, por fraqueza, tivesse desistido da felicidade, assinando assim seu atestado de burrice. No entanto há pessoas que assinariam de bom grado esse atestado, mas como um atestado de fraqueza ou de orgulho e não de burrice, até porque a burrice, se fosse o caso, permaneceria com ou sem tal assinatura. Aliás, a única coisa que ninguém pode escolher é ser burro, pois isto seria, de saída, uma escolha errada, e para fazer uma escolha errada é preciso ser burro antes mesmo de fazê-la. Portanto, ninguém é burro porque quer, e se isso ajudar a diminuir o preconceito de alguns já me dou por satisfeito.
O que acontece, normalmente, é que se toma pela expressão "gostar de sofrer" a idéia de gostar de ser triste, por exemplo. Mas poderíamos dar muitos outros exemplos: masoquismo, gostar de dar vexame etc., em nenhum dos casos a pessoa gosta de sofrer, pois esta expressão, por si só, é um contra-senso. O fato é que, como (i) cada um tem uma concepção da felicidade, que aliás é algo que por si só não tem sentido, e (ii) o ser humano é um fracasso em matéria de comunicação, de modo que a falta de comunicação me parece ser a causa de todos os males, a concepção de felicidade do outro sempre parece mais burra.
Uma das leis mais ignóbeis, a meu ver, é a que pune a tentativa de suicídio. Pra mim isto só prova a artificialidade desta mesma lei e, com isso, o abismo que há entre o legítimo e o legal, isto é, basicamente, entre o justo da ética e o justo da política. Não espanta que, entre aqueles que fazem as leis, grande parte seja formada por radialistas demagogos e pastores de igreja eleitos democraticamente, em suma: pessoas que, ao invés de manter seus preconceitos limitados pela liberdade de crença e opinião, no nível do direito, querem estipular para todos, no nível do dever, aquilo que só é válido para seu círculo, ainda que estes círculos sejam grandes representantes dos valores de massa. Isto prova ainda que a lei se fundamenta na e se caracteriza pela punição mais do que pelo bem comum. Não fosse assim, daríamos aos suicidas a pena capital e sairiam todos ganhando. Aliás, quer melhor ocasião para a pena capital?
O suicida não é, e não pode ser, na minha opinião, alguém fora de suas capacidades mentais que de repente viu um revólver e resolveu "estourar os miolos", pelo menos não, por assim dizer, o verdadeiro suicida, quer dizer, aquele que mata pelo mesmo motivo que faz os homicidas, estes sim, criminosos: o seu suposto livre-arbítrio, fora disso, tudo o mais será mero acidente, e é ridículo punir alguém por um acidente. Uma tentativa de suicídio, entretanto, não é um acidente, tudo o que temos a fazer é dar ao suicida uma segunda tentativa, de preferência indolor e, no mínimo, uma trégua para o caso de ele não aceitar, já que, com a desistência, ele se redime por isso mesmo de seu suposto crime: é como se o assassino ressuscitasse a vítima e pronto, iam todos passear no parque.
O que quero dizer é que o suicida é uma pessoa tão comum quanto qualquer outra, assim como aquelas que "gostam de sofrer". Aliás, o suicida é aquele cuja felicidade só depende dele, ele é autônomo por excelência, opta pela morte como outros, do alto de sua heteronomia, optam pelo sexo. Mais do que isso, é alguém que escolhe como, quando e onde morrer, além de dar à sua morte e, pelo mesmo ato, à sua vida - tantas vezes medíocre -, a dignidade de um porquê. Muito melhor do que alguém que, um belo dia, tem sua cabeça esmagada por um caminhão.
Voltando aos que "gostam de sofrer", dentre os quais eu sou o primeiro (risos): vivemos hoje uma ditadura da felicidade, é engraçado como qualquer outdoor idiota se importa com a sua felicidade, ainda que seja apenas a felicidade da novela das oito. E como muitos preferem se contentar com esta felicidade a encontrar um mínimo de prazer na tristeza, que será sempre inevitável, vale qualquer coisa pra "ser feliz". Ora, todas as vezes que me senti próximo desta idéia vaga de felicidade, não me senti senão ansioso, inseguro e vulnerável, além do retorno da tristeza se tornar uma ameaça constante, ameaça que, infalivelmente, se realiza, e isto porque eu ainda não conheci a verdadeira felicidade, pois esta se caracteriza, essencialmente, pelo tédio.
De resto, ser feliz é ipso facto largar a felicidade na mão dos outros, e como diria Ibsen: "o homem mais forte é aquele que está mais só". Com efeito, a liberdade é muitas vezes melhor do que a felicidade, pelo menos melhor do que a felicidade da novela das oito. O problema é quando entra em jogo a liberdade da novela das oito, mas aí já é outra história...

domingo, 18 de janeiro de 2009

Autismo

"Não há cura, não sabemos a causa. Há grande expectativa para que se confirme a hipótese de que há um componente genético importante" Estevão Vadasz, psiquiatra e responsável pela Associação de Amigos do Autista (AMA) de São Paulo, em entrevista à Gazeta do Povo.
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"não há um consenso sobre o que sejam verdadeiramente uma psicose infantil ou um autismo infantil" Maria Cristina Kupfer, Educação para o futuro, Psicanálise e educação, 2000.
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"Quem faz o diagnóstico é o psiquiatra infantil. Já o tratamento deve ser feito por uma equipe multidisciplinar. (...) No Brasil há divergência, fora não. Aqui os pais passam por uma via-crúcis, cinco, seis profissionais" Vadasz
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"Um dos principais entraves ao avanço dos estudos sobre a psicose infantil e o autismo está na disputa diagnóstica. A falta de concordância entre profissionais impede, logo de saída, qualquer estudo epidemiológico e dificulta enormemente as trocas científicas, já que os pesquisadores não estão falando do mesmo objeto de pesquisa - o autista do neurologista não é o autista do psicanalista" Kupfer
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"Há 30 anos pensava-se que o autismo era uma doença ou síndrome causada pela baixa qualidade na relação entre as mães e os filhos..." Vadasz
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"uma mãe sustenta para seu bebê o lugar de Outro primordial. Impelida pelo desejo, antecipará em seu bebê uma existência subjetiva... Desenhará com seu olhar, seu gesto, com as palavras, o mapa libidinal que recobrirá o corpo do bebê, cuja carne sumirá para sempre sob a rede que ela lhe tecer. (...) Quando esses atos de reconhecimento recíproco começam a falhar e se perde a sua constante realimentação, vemos surgir, logo por volta de seis meses de idade, os primeiros traços autistas. O bebê não olha para ninguém e evita especialmente o rosto materno... o bebê sentado não fixa a cabeça, que cai para o lado, já que não há por que olhar. Mais tarde, a boca, não erotizada, não recortada pelo trabalho materno de fazer nascer - nisso que é pura carne, pura necessidade - a pulsão oral, estará sempre semi-aberta... a criança exibirá uma baba constante, a deslizar por entre seus lábios moles" Kupfer
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"...Hoje sabemos que se trata de um transtorno biológico do desenvolvimento do sistema neurológico" Vadasz
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"O autismo de Kanner* nasce em estreita conexão com a culpabilização das mães. Em movimento oposto, são desculpabilizadas pela psiquiatria biológica: o problema está na falha dos neurotransmissores, dizem esses teóricos. Independentemente de que isso efetivamente possa ocorrer - embora não se saiba se é o autismo que a provoca ou se é o contrário - o uso que a sociedade faz disso é o seguinte: ao serem desculpabilizadas (e precisam sê-lo, pois efetivamente não têm culpa), são pelo mesmo ato desresponsabilizadas" Kupfer, grifos meus

*"Kanner oscilou, no transcurso de seus textos, entre considerar a dimensão do orgânico na etiologia do autismo - uma síndrome genética - e enfatizar as relações mãe-bebê para explicá-lo. (...) Para um psicanalista, a observação sobre o lugar das mães na montagem do autismo não é nada desprezível. Muitos deles puseram-se a buscar essas relações, mas não parecem ter sido mais felizes que Kanner. Hoje são eles o alvo de ataque das mães, associadas em AMAS por todo o mundo, e que fogem dos psicanalistas como o diabo da cruz" (idem)
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Enfim, fiz este post porque, na minha modesta opinião, a reportagem de Adriana Czelusniak, na Gazeta do Povo de hoje, me pareceu passar uma visão mais ou menos unilateral do tema. Mas podemos ainda acrescentar, a título de conclusão, o que diz Maria Cristina Kupfer no mesmo livro: "Nenhum psicanalista, em sã consciência, pode negar que um bebê seja antes de mais nada um feixe de nervos. E acolherá como bem-vindas todas as experiências que puderem avançar no conhecimento das bases neurológicas de todas as patologias. Um psicanalista acredita, porém, que o corpo de um bebê jamais sairá de sua condição de organismo biológico se não houver um outro ser que o pilote em direção ao mundo humano, que lhe dirija os atos para além dos reflexos e, principalmente, que lhes dê sentido. Assim, de nada adiantará um organismo absolutamente são se não houver quem o introduza no mundo do humano, vale dizer, da linguagem". Finalmente, vale ler o depoimento da própria jornalista que, além de fazer a reportagem para a Gazeta, é também mãe de uma criança com autismo.

sábado, 17 de janeiro de 2009

Feliz ano velho: errata

...acabei confundindo tudo.
Hoje não deslizo mais não,
não sou irônico mais não,
não tenho ritmo mais não.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

E por falar em Paulo Mendes Campos...

Agora, que chegaste à idade avançada de quinze anos, Maria da Graça, eu te dou este livro: Alice no País das Maravilhas.
Este livro é doido, Maria. Isto é: o sentido dele está em ti.
Escuta: se não descobrires um sentido na loucura acabarás louca. Aprende, pois, logo de saída para a grande vida, a ler este livro como um simples manual do sentido evidente de todas as coisas, inclusive as loucas. Aprende isso a teu modo, pois te dou apenas umas poucas chaves entre milhares que abrem as portas da realidade.
A realidade, Maria, é louca.
Nem o papa, ninguém no mundo, pode responder sem pestanejar à pergunta que Alice faz à gatinha: "Fala a verdade, Dinah, já comeste um morcego?"
Não te espantes quando o mundo amanhecer irreconhecível. Para melhor ou pior, isso acontece muitas vezes por ano. "Quem sou eu no mundo?" Essa indagação perplexa é o lugar-comum de cada história de gente. Quantas vezes mais decifrares esta charada, tão entranhada em ti mesma como os teus ossos, mais forte ficarás. Não importa qual seja a resposta; o importante é dar ou inventar uma resposta. Ainda que seja mentira.
A sozinhez (esquece essa palavra que inventei agora sem querer) é inevitável. Foi o que Alice falou no fundo do poço: "Estou tão cansada de estar aqui sozinha!" O importante é que ela conseguiu sair de lá, abrindo a porta. A porta do poço! Só as criaturas humanas (nem mesmo os grandes macacos e os cães amestrados) conseguem abrir uma porta bem fechada, e vice-versa, isto é, fechar uma porta bem aberta.
Somos todos tão bobos, Maria. Praticamos uma ação trivial e temos a presunção petulante de esperar dela grandes conseqüências. Quando Alice comeu o bolo, e não cresceu de tamanho, ficou no maior dos espantos. Apesar de ser isso o que acontece, geralmente, às pessoas que comem bolo.
Maria, há uma sabedoria social ou de bolso; nem toda sabedoria tem de ser grave.
A gente vive errando em relação ao próximo e o jeito é pedir desculpas sete vezes por dia: "Oh, I beg your pardon!" Pois viver é falar de corda em casa de enforcado. Por isso te digo, para a tua sabedoria de bolso: se gostas de gato, experimenta o ponto de vista do rato. Foi o que o rato perguntou à Alice: "Gostarias de gatos se fosses eu?"
Os homens vivem apostando corrida, Maria. Nos escritórios, nos negócios, na política, nacional e internacional, nos clubes, nos bares, nas artes, na literatura, até amigos, até irmãos, até marido e mulher, até namorados, todos vivem apostando corrida. São competições tão confusas, tão cheias de truques, tão desnecessárias, tão fingindo que não é, tão ridículas muitas vezes, por caminhos tão escondidos, que, quando os atletas chegam exaustos a um ponto, costumam perguntar: "A corrida terminou! mas quem ganhou?" É bobice, Maria da Graça, disputar uma corrida se a gente não irá saber quem venceu. Se tiveres de ir a algum lugar, não te preocupe a vaidade fatigante de ser a primeira a chegar. Se chegares sempre aonde quiseres, ganhaste.
Disse o ratinho: "Minha história é longa e triste!" Ouvirás isso milhares de vezes. Como ouvirás a terrível variante: "Minha vida daria um romance". Ora, como todas as vidas vividas até o fim são longas e tristes, e como todas as vidas dariam romances, pois o romance é só o jeito de contar uma vida, foge, polida mas energicamente, dos homens e das mulheres que suspiram e dizem: "Minha vida daria um romance!" Sobretudo dos homens. Uns chatos irremediáveis, Maria.
Os milagres sempre acontecem na vida de cada um e na vida de todos. Mas, ao contrário do que se pensa, os melhores e mais fundos milagres não acontecem de repente, mas devagar, muito devagar. Quero dizer o seguinte: a palavra depressão cairá de moda mais cedo ou mais tarde. Como talvez seja mais tarde, prepara-te para a visita do monstro, e não te desesperes ao triste pensamento de Alice: "Devo estar diminuindo de novo". Em algum lugar há cogumelos que nos fazem crescer novamente.
E escuta esta parábola perfeita: Alice tinha diminuído tanto de tamanho que tomou um camundongo por um hipopótamo. Isso acontece muito, Mariazinha. Mas não sejamos ingênuos, pois o contrário também acontece. E é um outro escritor inglês que nos fala mais ou menos assim: o camundongo que expulsamos ontem passou a ser hoje um terrível rinoceronte. É isso mesmo. A alma da gente é uma máquina complicada que produz durante a vida uma quantidade imensa de camundongos que parecem hipopótamos e de rinocerontes que parecem camundongos. O jeito é rir no caso da primeira confusão e ficar bem disposto para enfrentar o rinoceronte que entrou em nossos domínios disfarçado de camundongo. E como tomar o pequeno por grande e o grande por pequeno é sempre meio cômico, nunca devemos perder o bom humor.
Toda pessoa deve ter três caixas para guardar humor: uma caixa grande para o humor mais ou menos barato que a gente gasta na rua com os outros; uma caixa média para o humor que a gente precisa ter quando está sozinho, para perdoares a ti mesma, para rires de ti mesma; por fim, uma caixinha preciosa, muito escondida, para as grandes ocasiões. Chamo de grandes ocasiões os momentos perigosos em que estamos cheios de dor ou de vaidade, em que sofremos a tentação de achar que fracassamos ou triunfamos, em que nos sentimos umas drogas ou muito bacanas. Cuidado, Maria, com as grandes ocasiões.
Por fim, mais uma palavra de bolso: às vezes uma pessoa se abandona de tal forma ao sofrimento, com uma tal complacência, que tem medo de não poder sair de lá. A dor também tem o seu feitiço, e este se vira contra o enfeitiçado. Por isso Alice, depois de ter chorado um lago, pensava: "Agora serei castigada, afogando-me em minhas próprias lágrimas".
Conclusão: a própria dor deve ter a sua medida: É feio, é imodesto, é vão, é perigoso ultrapassar a fronteira de nossa dor, Maria da Graça.

(Paulo Mendes Campos, Para Maria da Graça, in Para gostar de ler; crônicas, São Paulo, Ática, 1979, v. 4, p. 73-76. Encontrado em Filosofando: introdução à filosofia de Maria Lúcia de Arruda Aranha e Maria Helena Pires Martins, São Paulo: Moderna, 1993, p. 295-296)

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Feliz ano velho

Hoje amanheceu muito frio em Curitiba. E no meu rosto surgiram dois grandes vincos embaixo dos olhos, mas não chorei. Quando acordei minha mãe desmanchava o pinheirinho e era como se desmontasse um cenário no qual se passou o natal e o ano novo e agora era inútil. Às vezes tenho a impressão de que, em todo lugar que eu vou, há alguém desmanchando o cenário e saindo de cena, cheio de coisas embaixo do braço, uma sensação de quem se enganou de endereço ou chegou atrasado. Li no jornal que Marcelo Rubens Paiva lançou "A segunda vez que te conheci", espécie de resposta a "O amor acaba" de Paulo Mendes Campos. Deu vontade de ler os dois. Seria bom, em tardes frias como essa, na companhia de Gardel e Jorge Drexler. Ah! se eu tivesse a oportunidade, tocava no ombro de Drummond e dizia que, de minha parte, eu nunca fui brasileiro, nunca ponteei viola, meu ritmo nem sei se já tive, sei que brasileiro não sou, sou argentino, ucraniano, russo, brasileiro é que nunca fui, o samba é uma música estrangeira que eu gostei, mas no momento o tango argentino ou a milonga paraguaia me vão melhor, até bem melhor que o blues. Não, brasileiro é um povo alegre, e eu sou apenas feliz. Mas é verdade, há uma hora em que os bares se fecham, e saímos à toa pelas ruas escuras e há sempre um rio que nos chama lá embaixo. Não sei, não sei se eu sou feliz, mas alegre pode crer que não. É que eu tô sozinho há tanto tempo que eu me esqueci o que é verdade e o que é mentira em volta de mim. Aí parece que eu preciso me desculpar, pedir desculpa a todos por não ser feliz, por não conhecer a verdadeira felicidade. "Nos tornamos piegas quando a tristeza é inevitável", diz o personagem de Paiva, sei como é. E nesta época Curitiba está deserta, mas, sinceramente, acho que nem curitibano eu sou mais. "Ser" alguma coisa não é tão fácil assim, exige a sensação de estar no mundo, e isso é difícil. Talvez o amor seja quando alguém desculpa a outra pessoa por não conhecer a verdadeira felicidade, então, quando a pessoa se sente perdoada, ela se apaixona, quem sabe aí ela tenha a sensação de estar no mundo, só então se poderá "ser" alguma coisa, só depois que alguém te perdoa por existir. Antes disso, existimos clandestinamente, nos permitimos beber, falar besteira, pois ainda não somos nada, porque enquanto ninguém nos perdoar ainda seremos vazios, até que alguém nos escolha, nos olhe bem nos olhos e diga: você "é" importante pra mim, aí você deixa de ser um fantasma e doravante poderá "ser" o que quiser, poderá freqüentar o mundo livremente, quem sabe então se possa ser curitibano e até brasileiro, talvez então se possa, irônico, deslizar.