sexta-feira, 28 de março de 2008

um minuto de silêncio

Melancolia. Talvez seja mesmo esta a palavra, mas ela não se expressa em palavras, nem em lágrimas, nem em poesia nem em prosa, ela faz parte de uma pequena parte do silêncio chamada coração, este pedaço do grande silêncio que se expõe em carne viva, como nas imagens do Sagrado Coração de Maria e de Jesus. O grande silêncio que sopra nas narinas de cada homem este dom, o dom de caminhar pelas calçadas quietos, carregando o silêncio no peito, apertado. O silêncio que ameaça escapar pelos olhos, mas que o rosto contrai num sorriso, triste. Na calçada, homens mortos caminham, rumo ao compromisso, seria o grande compromisso? Mas o que é grande? Quem sabe onde começa a grandeza e termina o Ser? Ninguém sabe, por isso levantam hirtos de manhã e vão trabalhar. Não sabem que existir é ser pequeno, e a isso chamam pessimismo, suspiro idiota dos fracos. Mas não se iludam: todo suspiro tem lá seu motivo. Melancolia? Guarde esta palavra para o caso de alguém perguntar teu nome. E por acaso alguém tem nome? Se nem mesmo o nome de nome é nome? E podemos ir mais longe, se olharmos pro céu e virmos que nele não caminham homens, que o compromisso dos pássaros é tão mais sério que o nosso, mas tão mais sério, que chegam a ter asas e voar.

terça-feira, 25 de março de 2008

Cartão Postal

Ao entrar no banheiro da Biblioteca Pública do Paraná, a conversa pela metade, o rapaz diz fechando o zíper:
- Cara, eu já andei por tudo, corri Manaus inteira, meu, sério, o povo mais idiota que tem é o curitibano, cara, te juro: é o povo mais mesquinho que tem...

sexta-feira, 21 de março de 2008

Lembranças do Seminário Menor

para Rubem Alves, teólogo e grande leitor de Camus

Ao ler no Rascunho que um tal de Alberto da Costa e Silva guarda de sua infância a bucólica lembrança do cheiro de esterco e leite, lembrei-me de um secreto episódio de minha época de seminário na cidade de Mallet, que nunca veio à baila. Todo dia de tardezinha, antes da missa das sete, enquanto um tocava o sino e outro contava e separava as hóstias, alguns de nós íamos tirar leite. Nunca fui bom nisto, tinha um certo receio do toque erótico na teta úmida e quente, e a vaca sempre me dirigia um olhar severo de reprovação.
A contragosto, fui iniciado na arte: era preciso firmeza, mão na teta, espuma no balde, aperta e puxa, aperta e puxa, o som borbulhante. No começo, uma mão no balde, outra na teta. Com o tempo, comemorava poder encher as duas mãos, o movimento alternado, sensação de domínio sobre a vaca. É claro que me deixavam sempre a mansa, além de um compreensivo amigo amarrar-lhe as pernas e segurar-lhe o chifre. O importante é que eu crescia, adquiria uma técnica a mais na vida.
Um belo dia, belo mesmo, porque o sol sangrava o céu de entardecer, eu estava deitado na cama lendo a Bíblia, ouvindo o sino que alguém tocava, o chuveiro ligado de um outro no banho, o movimento dos fiéis chegando pra missa, quando a irmã Genoveva, equilibrando-se em si mesma como um pingüim bêbado, entrou no dormitório desesperada:
- Ninguém tirou leite hoje! O padre Jorge vai ficar sem leite!
Ora, eu estava ali pra isso! Corri à estrebaria, prestativo e heróico:
- Pode deixar, irmã!
Era hora de mostrar meu talento, tudo corria certo, até a vaca pareceu sorrir ao me ver. Bunda no banquinho, balde no chão, mãos à teta, aperta e puxa, aperta e puxa, barulhinho, espuma e o balde enchendo, enchendo, branca festa! Até que o ubre foi secando, as mãos já doíam, mas o mais difícil tinha passado, não? Não: estava por vir. A vaca ergueu a pata, digamos que um tanto quanto enlameada, e shuá, cesta! Meu mundo caiu. O tempo urgia. Descalcei o pé do bovino com calma, senti a garganta embargada de choro. Contar pra irmã? E mostrar que sou incompetente? Jamais. Havia outro balde ali, não tive dúvida: tirei minha camiseta de algodão e filtrei o leite ali mesmo, como quem passa café no bule. Lavei a camiseta na torneira:
- Suor, irmã, suor.
Na manhã seguinte todos se admiravam de que eu, fervoroso adepto do café com leite, tomasse preto aquele forte café da irmã Genoveva. Minutos depois, o padre Jorge saía do refeitório dos padres, com mão na barriga e cara de satisfeito. Moral da história? Mais vale uma mão no balde que duas na teta.

Otávio, na sexta-feira santa de 2008.

sábado, 15 de março de 2008

O Enigma de Carlos

p/ Antonio Cicero

Sonhei que estava preocupado
E que no meu sonho havia
Algo de errado
Quando acordei
Me aliviei
Mas logo fiquei perturbado:
Não sabia do que
Eu tinha me aliviado

Otávio, em defesa da rima pobre

domingo, 9 de março de 2008

O deserto de Babel

Dizem que a palavra não existe, mas antes que a própria existência é uma palavra, como se fosse possível cavar buracos em abismos, como se fosse preciso uma lanterna pra ver o sol. Não, não vale a pena crer nesta triste verdade, nenhuma verdade vale à pena. Cada vez mais sou tragado por esse absurdo: já não tenho mãos que escrevem, nem estas têm carne, nem a carne é viva - é tudo palavra. Percebo isso como se meu coração secasse, como se a notícia fatal fosse dada. Olho em volta e as palavras me furam os olhos, me queixo em poemas como se vomitasse a bílis, pedaços de mim no chão. Até mesmo Deus veio até mim dizendo Aqui estou, e tudo que fiz foi anotar. E as palavras de Deus engoliam Deus, e quanto mais Ele falava, mais a boca ia envolvendo nariz e queixo, até que Deus se fez do avesso, tornou-se todo lábios de Maiakovski e desapareceu como o Gato de Alice. Sempre chega um dia, pode ser um domingo, em que se fica tão sozinho que não se tem mais que o próprio nome, um nome que nos trai com consoantes em vez de ossos. Já não adianta nos apresentar a ninguém: João, Maria. Maria, João. Não. Nem dizer eis-me aqui, nem. A palavra chega antes da gente, avisando o outro do nosso não-ser, estapeia-lhe o rosto para pensar que somos maus, aperta-lhe a carne para que pense que temos taras, esquenta-lhe os lábios a apregoar que o sangue nos sobe e nos arranca a roupa como se o vento fosse assim tão forte. E a palavra desce do céu, e sentimos vergonha porque estamos nus. Sim, porque no princípio era o verbo. Desde então o homem, mesmo que esse homem seja eu, anda pelo mundo atrás da não-palavra. Em busca do silêncio, silêncio que tem fim com o movimento da Terra, silêncio que se extingue, não ao brotar da flor, mas à simples idéia de que uma flor brote. Mas nunca se chega ao silêncio que subjaz: o silêncio, não dos astros que giram no espaço, mas antes do astro que nem foi pensado, até porque não existe. Ou vice-versa: tanto faz. Como se. Como se. Como se morrer fosse não ter nascido e essas coisas que diz toda mulher, quando está triste. Como. Como. A personagem de Woody Allen que se tornava superconsciente do próprio corpo. Macabéa sem saber o que tem dentro do seu nome, eu também não sei o que há dentro do meu nome, como aquela vez em que voltava pra casa por uma rua tão escura, mas tão escura que tive medo de que meu endereço não estivesse lá ou, se estivesse, que eu abrisse a porta e nada encontrasse de meu, e no quarto da minha mãe não fosse ela que dormisse, mas uma barata, como se outra família ali se alojasse, e falasse outra língua. Sartre tinha razão: um trem pode descarrilar. Mas eu era pequeno ainda, tinha medo do escuro. Hoje, antes que apaguem a luz, fecho os olhos, sabe como é: mudamos as teses para não mudarmos os fatos. E ainda assinamos embaixo. Tenho pena daquele velho que, graças ao novo ministro, aprendeu a escrever o nome, e sorria pra câmera porque conheceu a morte antes da morte, como quem conhece o sexo. Todo soberbo o velhote. Há quem se desculpe por não ter o que dizer, por faltar-lhe as palavras. Na verdade estamos sempre nos desculpando por não ter o que dizer. Pois quem teria, de fato, algo a dizer? Mas dizem também que o mundo não é assim tão mau, que é apenas redondo, entende? Mas ainda tenho dúvidas. Mas. Mas. Guardo cá meu ceticismo, acredito que as palavras são como o arco-íris: nos enganam dizendo a verdade. Que a palavra quebra as pernas ao inefável e corta-lhe a cabeça para que caiba em seu caixão. Que. Que. Que a palavra tira o leite e o mel tanto da pedra como da vaca morta. Porque Deus está em toda parte. Oremos, diz o padre, e todos se calam em vez de orar, porque assim se vaia Roma, e quem beber deste cale-se estará bebendo a própria consumação. Calamos. Porque. Porque. Porque a cada palavra se morre um pouco, deixa-se de ser o que se é e passa-se a ser o que se diz. E tudo pode ser usado contra nós. E será usado contra nós. E está sendo, mas não agora: agora faremos um minuto de silêncio.

sábado, 8 de março de 2008

Poléxia no Jokers

E não estavam sós, mas antes muito bem acompanhados pela banda paulista Ludov, nesta sexta, que está divulgando o lançamento de Disco Paralelo e que se apresentou logo depois da banda curitibana, esta que, por sua vez, enquando não é produzida pelo John, nos brinda com este CD ao vivo, pela Grande Garagem que Grava:
Tudo começou com o Poléxia cantando Aos Garotos de Aluguel: "Ela me chama quando quer, eu penso se vou lá. Me envolve num ardil qualquer, querendo me enganar. Essa situação não quer chegar a um final. Eu sou garoto de aluguel mas não vão me comprar. Eu vou te dar o teu prazer. Mas com amor é mais caro. Com amor é mais caro. O meu amor é o mais caro. Me diz quanto você pode pagar". Talvez por isso, no final, o Ludov lembrou "sei que há contas a pagar" e, pouco depois, os instrumentos cessavam para a voz de Vanessa Krongold soar em uníssono com todos: "quando eu te quiser, quando eu te quiser, quando eu te quiser, esteja em casa, esteja na sala de estar", sem falar que a Vanessa é linda: "parecia uma princesa".

quarta-feira, 5 de março de 2008

Registro Geral

"as crianças correm, para onde?" Adriana Calcanhotto

Há dias em que acordamos assim, por mais cruéis que sejamos, há dias em que tomamos ares humanistas, de querer amar a todos, simplesmente por compreendê-los. Amar talvez seja justamente isso: desistir. O exato momento em que o entender dá lugar ao compreender e, por isso, nos arrogamos além do verdadeiro e do falso, munidos apenas de uma simpatia irracional. Vamos amando a torto e a direito, sem pedir licença, àquela senhora de olhos grandes que nos olha, ao gari que nos é hostil, ao distraído que desvia de nós. Chegamos quase ao ponto de puxar conversa e, se é o outro que a puxa, deixamos os olhos brilhar e destilamos o mais puro fingimento para ouvir àquelas questões de ordem prática, tão pautadas por horários e nomes, tão cheias de seriedade. Na melhor das hipóteses, ouvimos um monólogo e tanto, caso contrário, é preciso lançar mão da nossa gama de conhecimentos gerais e tentar a sorte. Desastradamente. Deus sabe como é difícil digladiar em conhecimentos gerais com essa gente. Até que o ônibus venha, até que o pavil da fila do banco queime até o final, até que a nossa senha, a nossa!, seja anunciada em alto e bom som. Até mais. Até. Até. Saímos sempre mais cultos destas conversas improvisadas. Mesmo aqueles que não falam, que andam e andam e passam, como se a dança fosse ensaiada, mesmo estes têm no olhar uma despedida, um ar triste de quem se perdeu: com licença, poderia dizer de onde viemos e para onde vamos? Mas não, trazem todos, apertado na mão, o endereço amassado. No bolso de trás, escapando da calça frouxa que deixa entrever o início do fim de corpos cansados que se abaixam, a identidade plastificada, cheia de orelhas, grita surdo quem somos nós. E somos todos muito feios, obrigados a tirar essas fotos que querem de nós. Nada mais cínico que o fotógrafo a nos pedir pra sorrir, que o taxista a nos contar a mais velha das piadas e a exigir nosso riso com voz súplice de humorista. Como uma professora de biologia que conheci, cuja anedota máxima consistia em segurar nas mãos em riste, qual troféu, o RG, e proclamar o fim de sua crise de identidade. Sim, estamos todos no bolso de trás. Apertados em calças jeans, sempre sujeitos às mãos do burocrata: colados às nádegas de cada um destes pequeninos.

garrinchado por Otávio

Elogio da Dialética




O verdadeiro amante não ama:
discute sobre o amor.