para Rubem Alves, teólogo e grande leitor de Camus
Ao ler no Rascunho que um tal de Alberto da Costa e Silva guarda de sua infância a bucólica lembrança do cheiro de esterco e leite, lembrei-me de um secreto episódio de minha época de seminário na cidade de Mallet, que nunca veio à baila. Todo dia de tardezinha, antes da missa das sete, enquanto um tocava o sino e outro contava e separava as hóstias, alguns de nós íamos tirar leite. Nunca fui bom nisto, tinha um certo receio do toque erótico na teta úmida e quente, e a vaca sempre me dirigia um olhar severo de reprovação.
A contragosto, fui iniciado na arte: era preciso firmeza, mão na teta, espuma no balde, aperta e puxa, aperta e puxa, o som borbulhante. No começo, uma mão no balde, outra na teta. Com o tempo, comemorava poder encher as duas mãos, o movimento alternado, sensação de domínio sobre a vaca. É claro que me deixavam sempre a mansa, além de um compreensivo amigo amarrar-lhe as pernas e segurar-lhe o chifre. O importante é que eu crescia, adquiria uma técnica a mais na vida.
Um belo dia, belo mesmo, porque o sol sangrava o céu de entardecer, eu estava deitado na cama lendo a Bíblia, ouvindo o sino que alguém tocava, o chuveiro ligado de um outro no banho, o movimento dos fiéis chegando pra missa, quando a irmã Genoveva, equilibrando-se em si mesma como um pingüim bêbado, entrou no dormitório desesperada:
- Ninguém tirou leite hoje! O padre Jorge vai ficar sem leite!
Ora, eu estava ali pra isso! Corri à estrebaria, prestativo e heróico:
- Pode deixar, irmã!
Era hora de mostrar meu talento, tudo corria certo, até a vaca pareceu sorrir ao me ver. Bunda no banquinho, balde no chão, mãos à teta, aperta e puxa, aperta e puxa, barulhinho, espuma e o balde enchendo, enchendo, branca festa! Até que o ubre foi secando, as mãos já doíam, mas o mais difícil tinha passado, não? Não: estava por vir. A vaca ergueu a pata, digamos que um tanto quanto enlameada, e shuá, cesta! Meu mundo caiu. O tempo urgia. Descalcei o pé do bovino com calma, senti a garganta embargada de choro. Contar pra irmã? E mostrar que sou incompetente? Jamais. Havia outro balde ali, não tive dúvida: tirei minha camiseta de algodão e filtrei o leite ali mesmo, como quem passa café no bule. Lavei a camiseta na torneira:
- Suor, irmã, suor.
Na manhã seguinte todos se admiravam de que eu, fervoroso adepto do café com leite, tomasse preto aquele forte café da irmã Genoveva. Minutos depois, o padre Jorge saía do refeitório dos padres, com mão na barriga e cara de satisfeito. Moral da história? Mais vale uma mão no balde que duas na teta.
Otávio, na sexta-feira santa de 2008.