quarta-feira, 5 de março de 2008

Registro Geral

"as crianças correm, para onde?" Adriana Calcanhotto

Há dias em que acordamos assim, por mais cruéis que sejamos, há dias em que tomamos ares humanistas, de querer amar a todos, simplesmente por compreendê-los. Amar talvez seja justamente isso: desistir. O exato momento em que o entender dá lugar ao compreender e, por isso, nos arrogamos além do verdadeiro e do falso, munidos apenas de uma simpatia irracional. Vamos amando a torto e a direito, sem pedir licença, àquela senhora de olhos grandes que nos olha, ao gari que nos é hostil, ao distraído que desvia de nós. Chegamos quase ao ponto de puxar conversa e, se é o outro que a puxa, deixamos os olhos brilhar e destilamos o mais puro fingimento para ouvir àquelas questões de ordem prática, tão pautadas por horários e nomes, tão cheias de seriedade. Na melhor das hipóteses, ouvimos um monólogo e tanto, caso contrário, é preciso lançar mão da nossa gama de conhecimentos gerais e tentar a sorte. Desastradamente. Deus sabe como é difícil digladiar em conhecimentos gerais com essa gente. Até que o ônibus venha, até que o pavil da fila do banco queime até o final, até que a nossa senha, a nossa!, seja anunciada em alto e bom som. Até mais. Até. Até. Saímos sempre mais cultos destas conversas improvisadas. Mesmo aqueles que não falam, que andam e andam e passam, como se a dança fosse ensaiada, mesmo estes têm no olhar uma despedida, um ar triste de quem se perdeu: com licença, poderia dizer de onde viemos e para onde vamos? Mas não, trazem todos, apertado na mão, o endereço amassado. No bolso de trás, escapando da calça frouxa que deixa entrever o início do fim de corpos cansados que se abaixam, a identidade plastificada, cheia de orelhas, grita surdo quem somos nós. E somos todos muito feios, obrigados a tirar essas fotos que querem de nós. Nada mais cínico que o fotógrafo a nos pedir pra sorrir, que o taxista a nos contar a mais velha das piadas e a exigir nosso riso com voz súplice de humorista. Como uma professora de biologia que conheci, cuja anedota máxima consistia em segurar nas mãos em riste, qual troféu, o RG, e proclamar o fim de sua crise de identidade. Sim, estamos todos no bolso de trás. Apertados em calças jeans, sempre sujeitos às mãos do burocrata: colados às nádegas de cada um destes pequeninos.

garrinchado por Otávio

2 comentários:

Giuliano Gimenez disse...

"Na melhor das hipóteses, ouvimos um monólogo e tanto" e com autenticação no cartório.

garrincha mais pra mim, e bem torto, meu caro.

na cozinha, no quarto, na sala, enfim, no pequeno apartamento vc berra comigo Alô! iniludível.

Anônimo disse...

gostei muito

[nara]