"as crianças correm, para onde?" Adriana Calcanhotto
Há dias em que acordamos assim, por mais cruéis que sejamos, há dias em que tomamos ares humanistas, de querer amar a todos, simplesmente por compreendê-los. Amar talvez seja justamente isso: desistir. O exato momento em que o entender dá lugar ao compreender e, por isso, nos arrogamos além do verdadeiro e do falso, munidos apenas de uma simpatia irracional. Vamos amando a torto e a direito, sem pedir licença, àquela senhora de olhos grandes que nos olha, ao gari que nos é hostil, ao distraído que desvia de nós. Chegamos quase ao ponto de puxar conversa e, se é o outro que a puxa, deixamos os olhos brilhar e destilamos o mais puro fingimento para ouvir àquelas questões de ordem prática, tão pautadas por horários e nomes, tão cheias de seriedade. Na melhor das hipóteses, ouvimos um monólogo e tanto, caso contrário, é preciso lançar mão da nossa gama de conhecimentos gerais e tentar a sorte. Desastradamente. Deus sabe como é difícil digladiar em conhecimentos gerais com essa gente. Até que o ônibus venha, até que o pavil da fila do banco queime até o final, até que a nossa senha, a nossa!, seja anunciada em alto e bom som. Até mais. Até. Até. Saímos sempre mais cultos destas conversas improvisadas. Mesmo aqueles que não falam, que andam e andam e passam, como se a dança fosse ensaiada, mesmo estes têm no olhar uma despedida, um ar triste de quem se perdeu: com licença, poderia dizer de onde viemos e para onde vamos? Mas não, trazem todos, apertado na mão, o endereço amassado. No bolso de trás, escapando da calça frouxa que deixa entrever o início do fim de corpos cansados que se abaixam, a identidade plastificada, cheia de orelhas, grita surdo quem somos nós. E somos todos muito feios, obrigados a tirar essas fotos que querem de nós. Nada mais cínico que o fotógrafo a nos pedir pra sorrir, que o taxista a nos contar a mais velha das piadas e a exigir nosso riso com voz súplice de humorista. Como uma professora de biologia que conheci, cuja anedota máxima consistia em segurar nas mãos em riste, qual troféu, o RG, e proclamar o fim de sua crise de identidade. Sim, estamos todos no bolso de trás. Apertados em calças jeans, sempre sujeitos às mãos do burocrata: colados às nádegas de cada um destes pequeninos.
garrinchado por Otávio
2 comentários:
"Na melhor das hipóteses, ouvimos um monólogo e tanto" e com autenticação no cartório.
garrincha mais pra mim, e bem torto, meu caro.
na cozinha, no quarto, na sala, enfim, no pequeno apartamento vc berra comigo Alô! iniludível.
gostei muito
[nara]
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