sábado, 29 de abril de 2023

Três crônicas na fronteira

 Na aduana argentina, entrego o RG à funcionária.

- Tinha cabelo curto? - ela pergunta.

- Tinha - confirmo.

Ela sorri, e me entrega o documento.

"A cara de trouxa continua a mesma", deve ter pensado.


-


Na churrascaria, a mulher pergunta:

- Tem picanha?

O churrasqueiro saca o espeto como uma espada e o coloca no balcão.

- Tem mal passada? - a mulher protesta.

- O que tem é essa aqui - diz o churrasqueiro.

Silêncio.

Ela o olha bem no olho, séria, e pergunta:

- Você tem coração?


-


Ainda na churrascaria, no espaço kids, as crianças gritam entre soprano e tenor, sem musicalidade, e dão coices na piscina de bolinha, numa brincadeira incompreensível aos adultos. Até que um exagera no seu grito tenor, e o pai contemporiza:

- Não grita! Olha, tem sorvete lá...

As cinco ou seis crianças saem correndo em direção ao freezer, fazendo tremer o piso de madeira do local.

- Oba, sorvete! - diz o mais novo.

- Tem que ver se tem de milho - completa o mais velho (e mais sábio).


Otávio, Foz do Iguaçu, 2023.

sábado, 21 de março de 2020

A aranha na parede

É sábado. Ainda na cama, abro o olho e vejo uma terrível aranha na parede. Não: não foi aranha, nem foi na parede, mas foi o suficiente para tirar o meu sono. Já diria o poeta: o amor é isso, hoje beija, amanhã não beija. Esse sábado não beijou, preferiu apartar-se mais uma vez. Em seu lugar, surge sempre essa paisagem absurda: tudo que sempre esteve ali, porém “solto” como numa exposição. A roupa no cabide obedece apenas ao capricho de um curador, que em sua mente embriagada de arte quer mostrar ao público que nada faz sentido. Porque o primeiro impulso do público é vestir a roupa e ir pro trabalho. Mas... é sábado. No tanque há duas ou três folhas secas. Voaram até ali. A água da máquina irá envolvê-las numa dança plena de sentido. O único sentido que sobrou neste sábado: a complexidade da causa e do efeito. Passeio pela exposição em que acordei, como por engano. A garrafa de vinho vazia é uma peça interessante. Foi deixada sobre a mesa. Afastando-a, quase leio uma explicação no guardanapo em branco: esta garrafa simboliza a embriaguez desmedida de uma pessoa absurda; a uva, não por acaso, é tempranillo, que segundo os especialistas, “não envelhece bem” – a acidez é baixa, tem a elegância dos vinhos jovens. Também quem o bebeu não envelhece bem. Pois o tempo passou e não aprendeu a forjar um sentido, a ver a roupa fora do cabide, acompanhando o movimento do corpo, torcendo-se com as articulações. Mais do que forjá-lo, esforçou-se por relativiza-lo, com sucesso. É só isso: às vezes a engrenagem para, não se sabe bem por que, mas de todo modo ela volta a girar. Deixarei que isso aconteça amanhã. Só os suicidas têm real sede de sentido, e dela morrem. Nós, os não suicidas, convivemos bem com o absurdo. Pelo mesmo motivo que ainda não retirei as folhas secas do tanque, deixarei que os afagos do amor se afastem, e que em seu lugar venha a tempestade de areia. Basta fechar bem os olhos e a boca e aguardar um instante. Se olhar pela janela, ou melhor, pelo celular, vou ver a vida acontecendo. Posso ver todo este movimento como uma dança louca, um teatro incompreensível, mas me lembro que faço parte disto tudo. Não optei pelo suicídio porque o mundo não se tornou totalmente estranho, nem acho que se tornará. Eu danço a mesma dança que eles. Às vezes eu paro, mas ninguém percebe. Depois de amanhã é segunda, e a aranha não estará mais na parede, estará grudada na sola de algum chinelo; sentirei sono, mas levantarei cedo, vestirei a roupa e, abrindo a janela, ouvirei a música do mundo. Será hora de voltar a dançar.

domingo, 19 de janeiro de 2020

*

Todas as coisas cujos valores podem ser
disputados no cuspe à distância
servem para a poesia
(...)
Tudo aquilo que a nossa
civilização rejeita, pisa e mija em cima,
serve para poesia
(...)
As coisas jogadas fora
têm grande importância
- como um homem jogado fora
Aliás, é também objeto de poesia saber
qual o período médio que um homem jogado fora
pode permanecer na Terra
sem nascerem em sua boca
as raízes da escória
(...)
*de Manoel de Barros, Matéria de Poesia

sábado, 21 de setembro de 2019

Citação

Mesmo quem não lamenta o desaparecimento das ilusões religiosas no mundo cultural de hoje admitirá que, enquanto ainda estavam em vigor, ofereciam aos indivíduos ligados por meio delas a mais enérgica proteção contra o perigo da neurose. Também não é difícil reconhecer em todas as ligações com seitas e comunidades místico-religiosas ou filosófico-místicas a expressão de curas tortas de variadas neuroses. (...) Abandonado a si mesmo, o neurótico é forçado a substituir as grandes formações de massa, das quais está excluído, pelas suas formações de sintoma. Ele cria seu próprio mundo imaginário, sua religião, seu sistema delirante, e repete assim as instituições da humanidade... (FREUD, S. Psicologia das massas e análise do eu)

sábado, 8 de junho de 2019

Resposta a Álvaro de Campos


Fernando Pessoa, com seu heterônimo mais depressivo, dizia que, passadas algumas semanas do teu suicídio, ninguém se lembrará de ti. Ele estava errado. Pois não raro me recordo do meu grande amigo Felipe, muito embora a vida imponha a todos nós o imperativo do esquecimento de tantas coisas, em favor de nossa sanidade mental. Mesmo agora, você me faz questionar, como tantas vezes me fez discordando de mim. Me questiono, por exemplo, como a tua generosidade pôde, como um carro desgovernado que bate na barreira de pneus, acabar em um ato tão egoísta. Me questiono também como, em um mundo com a sertralina, a fluoxetina, a paroxetina e tantos outros inibidores seletivos da recaptação da serotonina (com perdão da cacofonia, que sei que te incomodava), você foi parar nas estatísticas que tanto se escondem e mitigam; lembrando que este é o mesmo mundo da psicanálise que, segundo você, surgiu quando Freud leu a vontade de poder do Nietzsche com “ph”.
A nossa conversa sobre suicídio, ou sobre eutanásia, como preferíamos chamar, nunca acabou... sempre restava alguma ponta filosófica solta neste novelo. Que falta você faz em um mundo tão simplista e reducionista! Seu repúdio à esquerda sempre foi um repúdio ao reducionismo. Seu repúdio aos Beatles e aos Rolling Stones era um repúdio ao óbvio e aos cânones da modernidade líquida, nisto você fazia coro com Adorno. Seu gosto por Shakespeare era um encanto tanto pela tragédia como pela comédia, não por acaso eras um fã do pequeno Shakespeare, o Chespirito. Isto é verdade por duas lembranças que guardo com carinho de ti.
O gosto pela tragédia e pela comédia, igualmente eficazes no seu efeito catártico, se reflete no que escreveste certa vez, a saber, que se pudesses ser um animal, serias um urso bipolar. A outra lembrança diz respeito à sua leitura metafísica de Chaves, quando ostentavas em teu MSN a frase “Esperem só até eu ganhar a minha bola quadrada!”. Aparentemente, você foi tão generoso que me deixou de presente a bola quadrada dos meus questionamentos, pois até mesmo o Kiko tinha momentos de generosidade. Se não me engano foi você quem me disse uma vez: no Chaves todo mundo é fudido! Não tem ninguém perfeito. É verdade. Mas eu posso alimentar nossa conversa interrompida, sobre o suicídio, com a ideia de que os suicidas têm certo apego à perfeição. Creio que foi assim com Van Gogh e Santos Dumont. Eu me pergunto, entre outras coisas, que orelha você tanto queria pintar. Aliás, é uma pena não poder te emprestar o livro “Meu amigo pintor” da Lígia Bojunga, tenho certeza que te tocaria mais do que aquele poema do Maiakovski que você, sempre autêntico, disse não ter “entendido a pira”. Você não gostava muito de MPB, mas tenho certeza que você entendeu melhor do que ninguém o que significa “amar daquela vez como se fosse a última”. No fim todos morreremos na contramão, atrapalhando o tráfego. O tráfego, fluvial, da modernidade líquida, e quem se atrever a atravessá-lo será atropelado por barcos cheios de memes.
Uma das lembranças que guardo com mais carinho de ti é a tarde em que marcamos de ir no Paiol literário, perto da PUC, onde estudaste. No entanto, paramos para tomar uma cerveja num bar e, a certa altura, desistimos de ver o entrevistado da noite. Durante aquela cerveja, que não foi só uma, falamos de existencialismo cristão e de niilismo (pode ser que o Kierkegaard tenha entrado na história, mesmo que nenhum de nós dois o tenha lido à época), de repente você mencionou Francisco de Assis como um admirável religioso niilista, com seu niilismo mitigado. E ainda fascinados por esta inversão de expectativa, eu mencionei Jesus como um niilista “enrustido” e, embora eu estivesse apenas reverberando uma tese nietzschiana, este foi o start de uma risada que parecia que nunca mais ia acabar. Rimos tanto quanto as pessoas daquela crônica do Veríssimo que você gostava. Ou era do Rubem Braga?? Sim, era do Rubem Braga. Veríssimo era midiático demais para você (o Luís, mas não o Érico!), e não te permitias te identificar com ele apenas por causa da timidez, como talvez eu tenha feito.
Pasme, mas eu muitas vezes citei você para impressionar garotas, por exemplo com tua interpretação de “Hallowed be thy name” vis a vis O muro e O estrangeiro, respectivamente de Sartre e Camus, música da donzela de aço pela qual eras apaixonado, numa promiscuidade na qual te permitias te apaixonar por tantas outras coisas. A última vez que me lembrei inadvertidamente de ti foi quando eu conversava com uma menina no Tinder, e ela disse que gostava de humanas, e eu disse “eu também, não tenho sorte com as outras fêmeas”. Eu perdi a menina, mas não perdi a piada. Saiba que terás em mim um continuador das piadas do tio do pavê, sem que se caia na irresponsabilidade e superficialidade do atual presidente da república, por exemplo. Sei que você repudiava a far right tanto quanto a far left. Você que chegava a negar o cunho de protesto de algumas canções dos anos setenta, em favor de interpretações atemporais, que eram igualmente válidas, e que faziam parte da estratégia de drible à censura. A intensidade com que concordávamos era, pendularmente, alimentada pela intensidade com que discordávamos, talvez porque tínhamos em comum esta paixão pela linguagem e suas manifestações ao longo da história. Nem eu nem você acreditávamos em vida após a morte, mas nas últimas conversas eu me lembro do desprezo que você nutria pelo ateísmo, novamente aqui estava o seu repúdio a toda forma de reducionismo. Pois é, meu caro, como não acreditar em vida após a morte se eu mesmo tantas vezes morri, na depressão, e de certa forma sobrevivi, e você, cuja presença física me foi tão cruelmente negada, ainda está tão vivo em minha memória?

terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

Paraíso do Tuiuti 2018 | Clipe oficial #NãoSouEscravoDeNenhumSenhor

Irmão de olho claro ou da Guiné
Qual será o seu valor? Pobre artigo de mercado
Senhor, eu não tenho a sua fé e nem tenho a sua cor
Tenho sangue avermelhado
O mesmo que escorre da ferida
Mostra que a vida se lamenta por nós dois
Mas falta em seu peito um coração
Ao me dar a escravidão e um prato de feijão com arroz

Eu fui mandiga, cambinda, haussá
Fui um Rei Egbá preso na corrente
Sofri nos braços de um capataz
Morri nos canaviais onde se plantava gente

Ê Calunga, ê! Ê Calunga!
Preto velho me contou, preto velho me contou
Onde mora a senhora liberdade
Não tem ferro nem feitor

Amparo do Rosário ao negro benedito
Um grito feito pele do tambor
Deu no noticiário, com lágrimas escrito
Um rito, uma luta, um homem de cor

E assim quando a lei foi assinada
Uma lua atordoada assistiu fogos no céu
Áurea feito o ouro da bandeira
Fui rezar na cachoeira contra bondade cruel

Meu Deus! Meu Deus!
Seu eu chorar não leve a mal
Pela luz do candeeiro
Liberte o cativeiro social

Não sou escravo de nenhum senhor
Meu Paraíso é meu bastião
Meu Tuiuti o quilombo da favela
É sentinela da libertação

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

Informação ao crucificado

...percebo a vida religiosa em aspectos teatrais, rotineiros. Sinto-a naufragada sem remissão num rito estéril que, tirante a beleza, nada mais lembra que a nossa vã condição de homem. A alma, então, parece-me feita de carne. E gemo, pedindo um pouco mais de eternidade.
...Pe. Jorge, professor de literaturas antigas, pediu-me o discurso. Ouvira mal a leitura, do canto onde estava perdera palavras, queria fazer juízo mais detido. Entreguei-lhe o papelório. Pe. Jorge mudou de óculos, franziu a testa, enfiou-se na leitura das doze páginas datilografadas. A testa ficou enrugada até o final. Por dois ou três momentos esboçou um sorriso. Acabou a última folha, olhou no verso para ver se tinha mais, trocou novamente os óculos. E com uma porção de sentidos:
- É. Você anda lendo demais. Papini, Karl Adam, Daniel Rops, Carrel e outros. É preciso agora pensar um pouco sobre tudo o que já leu. Não seja tão apressado. O mundo não está à espera de sua opinião. Guarde-a consigo mesmo até se sentir original. E quando se sentir original, seja então mais original, guarde mais ainda o que sabe.
Eduardo fazia ar de triunfo. Eu fiz ar cristão:
- Muito obrigado!

(Cony, trechos)