Fernando
Pessoa, com seu heterônimo mais depressivo, dizia que, passadas algumas semanas
do teu suicídio, ninguém se lembrará de ti. Ele estava errado. Pois não raro me
recordo do meu grande amigo
Felipe, muito embora a vida imponha a todos nós o
imperativo do esquecimento de tantas coisas, em favor de nossa sanidade mental.
Mesmo agora, você me faz questionar, como tantas vezes me fez discordando de
mim. Me questiono, por exemplo, como a tua generosidade pôde, como um carro
desgovernado que bate na barreira de pneus, acabar em um ato tão egoísta. Me
questiono também como, em um mundo com a sertralina, a fluoxetina, a paroxetina
e tantos outros inibidores seletivos da recaptação da serotonina (com perdão da
cacofonia, que sei que te incomodava), você foi parar nas estatísticas que
tanto se escondem e mitigam; lembrando que este é o mesmo mundo da psicanálise
que, segundo você, surgiu quando Freud leu a vontade de poder do Nietzsche com
“ph”.
A nossa
conversa sobre suicídio, ou sobre eutanásia, como preferíamos chamar, nunca
acabou... sempre restava alguma ponta filosófica solta neste novelo. Que falta
você faz em um mundo tão simplista e reducionista! Seu repúdio à esquerda
sempre foi um repúdio ao reducionismo. Seu repúdio aos Beatles e aos Rolling
Stones era um repúdio ao óbvio e aos cânones da modernidade líquida, nisto você
fazia coro com Adorno. Seu gosto por Shakespeare era um encanto tanto pela
tragédia como pela comédia, não por acaso eras um fã do pequeno Shakespeare, o
Chespirito. Isto é verdade por duas lembranças que guardo com carinho de ti.
O gosto pela
tragédia e pela comédia, igualmente eficazes no seu efeito catártico, se
reflete no que escreveste certa vez, a saber, que se pudesses ser um animal,
serias um urso bipolar. A outra lembrança diz respeito à sua leitura metafísica
de Chaves, quando ostentavas em teu MSN a frase “Esperem só até eu ganhar a
minha bola quadrada!”. Aparentemente, você foi tão generoso que me deixou de
presente a bola quadrada dos meus questionamentos, pois até mesmo o Kiko tinha
momentos de generosidade. Se não me engano foi você quem me disse uma vez: no
Chaves todo mundo é fudido! Não tem ninguém perfeito. É verdade. Mas eu posso
alimentar nossa conversa interrompida, sobre o suicídio, com a ideia de que os
suicidas têm certo apego à perfeição. Creio que foi assim com Van Gogh e Santos
Dumont. Eu me pergunto, entre outras coisas, que orelha você tanto queria
pintar. Aliás, é uma pena não poder te emprestar o livro “Meu amigo pintor” da
Lígia Bojunga, tenho certeza que te tocaria mais do que aquele poema do
Maiakovski que você, sempre autêntico, disse não ter “entendido a pira”. Você
não gostava muito de MPB, mas tenho certeza que você entendeu melhor do que
ninguém o que significa “amar daquela vez como se fosse a última”. No fim todos
morreremos na contramão, atrapalhando o tráfego. O tráfego, fluvial, da
modernidade líquida, e quem se atrever a atravessá-lo será atropelado por
barcos cheios de memes.
Uma das
lembranças que guardo com mais carinho de ti é a tarde em que marcamos de ir no
Paiol literário, perto da PUC, onde estudaste. No entanto, paramos para tomar
uma cerveja num bar e, a certa altura, desistimos de ver o entrevistado da
noite. Durante aquela cerveja, que não foi só uma, falamos de existencialismo
cristão e de niilismo (pode ser que o Kierkegaard tenha entrado na história,
mesmo que nenhum de nós dois o tenha lido à época), de repente você mencionou
Francisco de Assis como um admirável religioso niilista, com seu niilismo
mitigado. E ainda fascinados por esta inversão de expectativa, eu mencionei
Jesus como um niilista “enrustido” e, embora eu estivesse apenas reverberando
uma tese nietzschiana, este foi o start
de uma risada que parecia que nunca mais ia acabar. Rimos tanto quanto as
pessoas daquela crônica do Veríssimo que você gostava. Ou era do Rubem Braga?? Sim,
era do Rubem Braga. Veríssimo era midiático demais para você (o Luís, mas não o
Érico!), e não te permitias te identificar com ele apenas por causa da timidez,
como talvez eu tenha feito.
Pasme, mas eu
muitas vezes citei você para impressionar garotas, por exemplo com tua
interpretação de “Hallowed be thy name” vis
a vis O muro e O estrangeiro, respectivamente de Sartre e Camus, música da
donzela de aço pela qual eras apaixonado, numa promiscuidade na qual te
permitias te apaixonar por tantas outras coisas. A última vez que me lembrei
inadvertidamente de ti foi quando eu conversava com uma menina no Tinder, e ela
disse que gostava de humanas, e eu disse “eu também, não tenho sorte com as
outras fêmeas”. Eu perdi a menina, mas não perdi a piada. Saiba que terás em
mim um continuador das piadas do tio do pavê, sem que se caia na
irresponsabilidade e superficialidade do atual presidente da república, por
exemplo. Sei que você repudiava a far
right tanto quanto a far left.
Você que chegava a negar o cunho de protesto de algumas canções dos anos
setenta, em favor de interpretações atemporais, que eram igualmente válidas, e
que faziam parte da estratégia de drible à censura. A intensidade com que
concordávamos era, pendularmente, alimentada pela intensidade com que
discordávamos, talvez porque tínhamos em comum esta paixão pela linguagem e
suas manifestações ao longo da história. Nem eu nem você acreditávamos em vida
após a morte, mas nas últimas conversas eu me lembro do desprezo que você
nutria pelo ateísmo, novamente aqui estava o seu repúdio a toda forma de
reducionismo. Pois é, meu caro, como não acreditar em vida após a morte se eu
mesmo tantas vezes morri, na depressão, e de certa forma sobrevivi, e você, cuja
presença física me foi tão cruelmente negada, ainda está tão vivo em minha
memória?