por Marcelo Rubens Paiva
O professor de história tem que ser de esquerda. E barbudo.
Tem que contestar os regimes, o sistema, sugerir o novo, o diferente.
Tem que expor injustiças sociais, procurar a indignação dos seus alunos,
extrair a bondade humana, o altruísmo.
Como abordar o absolutismo, a escravidão, o
colonialismo, a Revolução Industrial, os levantes operários do começo do
século passado, Hitler e Mussolini, as grandes guerras, a guerra fria, o
liberalismo econômico, sem uma visão de esquerda?
A minha do colegial era a Zilda, inesquecível, que dava
textos de Marx Webber, do mundo segmentado do trabalho. Ela era
sarcástica com a disparidade econômica e a concentração de renda do
Brasil. Das quais nossas famílias, da elite paulistana, eram produtoras.
Em seguida,
veio o professor Beno (Benauro). Foi preso e torturado pelo DOI-Codi, na
leva de repressão ao PCB de 1975, que matou Herzog e Manoel Fiel Filho.
Benauro era do Partidão, como nosso professor Faro (José Salvador),
também preso no colégio. Eu tinha 16 anos quando os vimos pelas janelas
da escola, escoltados por agentes.
Outro professor, Luiz Roncari, de português, também fora
preso. Não sei se era do PCB. Tinha um tique nos olhos. O chamávamos de
Luiz Pisca-Pisca. Diziam que era sequela da tortura. Acho que era apenas
um tique nervoso. Dava aulas sentado em cima da mesa. Um ato
revolucionário.
Era muito bom ter professores ativistas e revolucionários me educando. Era libertador.
Não tem como fugir. O professor legal é o de esquerda,
como o de biologia precisa ser divertido, darwinista e doidão, para
manter sua turma ligada e ajudar a traçar um organograma genético da
nossa família. A base do seu pensamento tem de ser a teoria da evolução.
Ou vai dizer que Adão e Eva nos fizeram?
O de química precisa encontrar referências nos elementos
que temos em casa, provar que nossa cozinha é a extensão do seu
laboratório, sugerir fazer dos temperos, experiências.
O professor de física precisa explicar Newton e
Einstein, o chuveiro elétrico e a teoria da relatividade e
gravitacional, calcular nossas viagens de carro, trem e foguete, mostrar
a insignificância humana diante do colossal universo, mostrar imagens
do Hubble, buracos negros, supernovas, a relação energia e massa, o
tempo curvo.
Nosso professor de física tem que ser fã de Jornada nas
Estrelas. Precisa indicar como autores obrigatório Arthur Clarke, Philip
Dick, George Orwell. E dar os primeiros axiomas da mecânica quântica.
O professor de filosofia precisa ensinar Platão,
Sócrates e Aristóteles, ao estilo socrático, caminhando até o pátio,
instalando-se debaixo de uma árvore, sem deixar de passar pela poesia de
Heráclito, a teoria de tudo de Parmênides, a dialética de Zenão. Pula
para Hegel e Kant, atravessa o niilismo de Nietzsche e chega na vida sem
sentido dos existencialistas. Deixa Marx e Engels para o professor de
história barbudo, de sandália, desleixado e apaixonante.
O professor de português precisa ser um poeta delirante,
louco, que declama em grego e latim, Rimbaud e Joyce, Shakespeare e
Cummings, que procura transmitir a emoção das palavras, o jogo do
inconsciente com a leitura, a busca pela razão de ser, os conflitos
humanos, que fala de alegria e dor, de morte e prazer, de beleza e
sombra, de invenção fingimento.
O de geografia precisa falar de rios, penínsulas, lagos,
mares, oceanos, polos, degelo, picos, trópicos, aquecimento, Equador,
florestas, chuvas, tornados, furacões, terremotos, vulcões, ilhas,
continentes, mas também de terras indígenas, garimpo ilegal, posseiros,
imigração, geopolítica, fronteiras desenhadas pelos colonialistas,
diferenças entre xiitas e sunitas, mostrar rotas de transação de
mercadorias e comerciais, guerra pelo ouro, pelo diamante, pelo
petróleo, seca, fome, campos férteis, civilização.
A missão deles é criar reflexões, comparações, provar
contradições. Provocar. Espalhar as cartas de diferentes naipes
ideológicos. Buscar pontos de vista.
O paradoxo do movimento Escola Sem Partido está na
justificativa e seu programa: “Diante dessa realidade – conhecida por
experiência direta de todos os que passaram pelo sistema de ensino nos
últimos 20 ou 30 anos –, entendemos que é necessário e urgente adotar
medidas eficazes para prevenir a prática da doutrinação política e
ideológica nas escolas, e a usurpação do direito dos pais a que seus
filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias
convicções”.
Mas como nasceriam as convicções dos pais que se
criariam num mundo de escolas sem ideologia? E que doutrina defenderiam
gerações futuras?
A escola não cria o filho, dá instrumentos. O papel dela
é mostrar os pensamentos discordantes que existem entre nós. O
argumento de escola sem ideologia é uma anomalia de Estado Nação.
Uma escola precisa acompanhar os avanços teóricos
mundiais, o futuro, melhorar, o que deve ser reformulado. Um professor
conservador proporia manter as coisas como estão. Não sairíamos nunca,
então, das cavernas.
O Estado de S. Paulo
16 Julho 2016