quinta-feira, 21 de junho de 2012

O escafandro, a borboleta e a síndrome de locked-in

Como se não bastassem os livros que estão na minha ‘fila’, há aqueles que a furam e me caem magneticamente nas mãos. Digo isso porque estou gostando muito de ler “O escafandro e a borboleta” (disponível em pdf), espécie de diário/biografia de Jean-Dominique Bauby após sofrer um acidente vascular cerebral que o deixou com a síndrome de locked-in, na qual, “paralisado dos pés à cabeça”, para usar as palavras do autor, “o paciente fica trancado no interior de si mesmo com o espírito intato”. E foi assim que ele escreveu o livro, “tendo os batimentos de sua pálpebra esquerda como único meio de comunicação”. Em todo caso, quero deixar claro que o livro é auto-explicativo e bem que dispensa esta minha apresentação. Sem mais, então, seguem algumas linhas do mesmo:
___
Tive despertares mais suaves. Quando recobrei a consciência, naquela manhã de fim de janeiro, um homem estava inclinado sobre mim e costurava minha pálpebra direita com linha e agulha, como se remendasse um par de meias. Fui dominado por um medo irracional. E se o oftalmo me costurasse também o olho esquerdo, único vínculo meu com o exterior, único respiradouro do meu cárcere, a viseira do meu escafandro? Por sorte não fui imerso na noite. Ele arrumou com cuidado o seu materialzinho em caixas de metal forradas de algodão e, com jeito de promotor que exige pena exemplar para um reincidente, despachou: “Seis meses”. Com meu olho válido, multipliquei os sinais interrogadores, mas o homenzinho, mesmo passando seus dias a perscrutar a pupila alheia, ainda não tinha aprendido a ler olhares. Era o protótipo do doutor Que-se-ferre, altivo, ríspido, arrogante, que convoca imperativamente os pacientes para a consulta às oito, chega às nove e vai embora às nove e cinco, depois de dedicar a cada um quarenta e cinco segundos do seu precioso tempo. Fisicamente, parecia-se com o Pimentinha, cabeça redonda num corpo curto e agitado. Já pouco falante com o comum dos doentes, tornava-se literalmente fugidio com os fantasmas do meu tipo, não tendo saliva para gastar dando-nos a mínima explicação. Acabei sabendo por que ele me obturara o olho por seis meses: a pálpebra não desempenhava mais seu papel de toldo móvel e protetor, e minha córnea corria o risco de ulcerar-se.
Ao longo das semanas, eu meditava se o hospital por acaso não usaria de propósito um tipo tão rebarbativo para catalisar a surda desconfiança que o corpo médico acaba por despertar nos pacientes de longa permanência. Um bode expiatório, digamos. Se ele for embora, como estão dizendo, de que pernóstico vou poder gozar? À sua eterna pergunta: “Está vendo em dobro?”, eu não teria mais o prazer solitário e inocente de ouvir-me a responder, em meu foro íntimo: “Sim, estou vendo dois babacas em vez de um”.
Tanto quanto de respirar, sinto necessidade de emocionar-me, amar e admirar. A carta de um amigo, um quadro de Balthus num cartão postal, uma página de Saint-Simon dão sentido às horas que passam. Mas, para continuar vigilante e não afundar na resignação indiferente, conservo certa dose de furor, de detestação, nem de mais nem de menos, assim como a panela de pressão tem sua válvula de segurança para não explodir... (trecho do capítulo “A voz em ‘off’”)